domingo, 4 de outubro de 2009

A Vida dos Outros

A Vida dos Outros (2007)

Branca Machado – 18/02/2008


“Eles sabem quantos sapatos compro por ano: 2,3. Quantos livros leio por ano: 3,2. Sabem de tudo menos o número de suicídios anual neste país.Pararam de contar...” Esta é a Alemanha Oriental de “ A vida dos Outros”. Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2007, esta ficção é ambientada em um país cheio de perseguições, medo e nostalgia.
No filme, acompanhamos o Capitão Gerd Wiesler (Ulrich Mühe), funcionário da STASI, a polícia secreta e inteligência da República Democrática Alemã, em sua missão de vigiar a vida do dramaturgo Georg Dreyman (Sebastian Koch).
Em um país no qual observar a vida dos outros era missão de polícia, o ministro da cultura Bruno Hempf (Thomas Thieme) praticamente obriga Wiesler a achar alguma coisa contra o autor, ao instruí-lo para a missão. Numa inversão de papéis muito comum em uma forma de regime autoritária: realizar perseguições pessoais usando a polícia do partido.
O filme se passa em 1984, na Berlim Oriental, época em que o objetivo declarado da STASI era: saber de tudo. Não sei se a data é uma referência à obra “1984” de George Orwell, mas o que acontece ali é praticamente o que o livro prevê: Um encolhimento da cultura e da vida particular em nome de um social que não existe.Na obra de Orwell, se alguém pensasse diferente, cometia crimidéia (crime de idéia) e fatalmente seria capturado pela Polícia do Pensamento e desapareceria. O mesmo acontece no filme, afinal, o que o capitão tinha que descobrir é se o dramaturgo Georg pensava diferente.
O capitão é rígido, sistemático, metódico, exigente e, essencialmente leal ao partido, ou melhor, ao que ele acha que deveria ser o partido. Há uma cena que exemplifica bem isto. O chefe alerta Wiesler no restaurante: “Você se esqueceu? Os chefes sentam lá!”. Wiesler, então, senta-se à mesa junto aos outros e replica: “O socialismo tem que começar de algum lugar!”. Com este diálogo, percebemos que ele tem idealismo, segue uma causa. E, aos poucos, percebemos (e ele também) que é a causa da bondade, da justiça, da dignidade.
Quando vamos ao cinema, vamos para observar a vida dos outros. No caso deste filme, observarmos alguém vigiar dia e noite a vida de um casal. E, assim, vigiamos ambos. Percebemos como o capitão se transforma por meio desta observação. No cinema, nós reelaboramos a situação. Encontrando conforto, refletindo sobre ela. Acontece o mesmo com Wiesler ao se tornar espectador da vida de Georg e sua mulher, a atriz Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck). Ele reelabora seu ofício e sua ideologia a partir dos livros que eles lêem, da música que escutam e da maneira como encaram a vida. E sua missão se torna mais bela na medida de seu envolvimento. É maravilhoso assistir a conversa em que ele, com um comentário, altera uma decisão de Christa que, para o relacionamento do casal, seria o fim. Neste momento, ele atua como um anjo da guarda e não como o algoz que, a princípio, deveria ser.
Tanto neste filme como em “4 meses, 3 semanas e 2 dias”, de Cristian Mungiu, que se passa na Romênia, em 1987, notamos algumas características comuns aos países comunistas então existentes. A constante utilização do sexo como moeda de troca entre mulheres sem outra escolha, se não se submeter a homens que podem fazer “alguma coisa” por elas perante a autoridade do partido. Numa lógica depravada, mas exata. Em ambos os filmes, as casas, apartamentos, bares, são impessoais e decadentes. Tudo igual, sem detalhes que os diferenciem. Todos cinzentos e descuidados.
No caso de “A vida dos Outros”, apenas a casa do dramaturgo tem algo de especial, pessoal. Aliás, o filme é talhado desses detalhes que o tornam ainda mais elaborado. Em um momento emblemático, assistimos ao chefe ameaçar Wiesler: “Você ficará abrindo cartas no vapor por uns bons 20 anos! Até se aposentar!“. Então, a câmera enfatiza uma foto de Gorbachev, assumindo o poder da URSS, na manchete de um jornal que está largado no banco do carro e entendemos imediatamente que o período previsto na ameaça será muito menor.
O filme nos surpreende de várias maneiras, mas, principalmente, por sua docilidade. No início, mostra-se como o regime socialista e sua polícia eram duros e intolerantes e como a STASI agia com os “inimigos do estado”, mas a história é muito mais que isso. É a história de um homem que descobriu sensibilidade no meio de um ambiente blindado. Encerro, assim, com uma cena que diz mais que qualquer conclusão. O chefe pergunta a Wiesler quando pede a ele para interrogar Crisha: “Você ainda está do lado certo?” Pergunta retórica, mas não neste caso. Pois Wiesler estava do lado certo... Apenas seu conceito de certo havia mudado.

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