quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Argentina, 1985


Argentina, 1985 é um filme de julgamento baseado em uma história real. Não só isto. É sobre o primeiro julgamento civil de réus militares no país. Dirigido por Santiago Mitre e estrelado por Ricardo Darín e Juan Pedro Lanzani, ele foi pré-selecionado para disputar uma das cinco vagas de concorrência ao Oscar 2023 de Melhor Filme Internacional. Merecidamente. O filme nos envolve e traz sensação de pertencimento. Parece que fazemos parte da equipe da promotoria.  

Disponível na Amazon Prime Video, a trama tem início em dezembro de 1983, com o fim da ditadura na Argentina. Acredita-se que mais de 30 mil pessoas foram mortas durante o período no país. Com 7 meses do novo governo, o julgamento militar dos envolvidos com os crimes não andava. A solução foi transferir o processo para a esfera civil. Os responsáveis pela acusação seriam Julio César Strassera (Darín) e seu adjunto, Moreno Ocampo (Lanzani).     

No início, Julio se mostrou apreensivo com esta possibilidade, já que acreditava que o julgamento fosse mais uma utopia. Quando ele recebe a notícia de que será o promotor do caso, rebate: "Não serei o idiota que irá defender algo que nem o governo acredita." E seu superior resume: "Você é o promotor. Não pode recusar". Ao comentar com Ruso (Norman Briski) sobre a situação, enfatiza: "A história não foi feita por caras como eu" e Ruso rebate "No entanto, você será o promotor do julgamento mais importante da história da Argentina". 

Em algumas cenas, vemos que até Raúl Alfonsín, presidente do país à época, dava depoimentos públicos em que culpava as vítimas pelo que sofreram no período ditatorial; o que reforçava o desânimo da promotoria. Strassera teve também dificuldades para montar sua equipe; que precisaria reunir provas em tempo exíguo (4 meses até o início do julgamento). 90% ou mais funcionários públicos não queriam se envolver com aquele processo. Muitos, inclusive, não colaboraram por não acreditar que toda aquela crueldade realmente tivesse acontecido.  

Ocampo traz a solução: "Se os experientes não querem, vamos trazer os inexperientes". A seleção e montagem da equipe renderam ótimas cenas, bem como a busca por provas e testemunhas. Em certo momento, o promotor pergunta a um candidato: "Em quem você votou na última eleição?" e ele responde "Eu não votei. Eu tinha 17 anos". No dia da entrega dos documentos comprobatórios, o defensor público questiona Strassera: "Onde arrumou esta equipe? Nos escoteiros?" E o promotor alerta: "Sugiro que preste mais atenção à eloquência das minhas provas que à juventude da minha equipe". 

A dinâmica entre Strassera e Ocampo é uma atração à parte. O mais velho é sistemático, mal-humorado, discreto. Sua declaração de encerramento é comedida. Não há grandes gestos no tribunal, nem voz levantada.  Como descreve o Hollywood Reporter "de sua cadeira, o funcionário do governo afirma o tormento infligido a milhares de seus concidadãos, e Argentina, 1985 nos lembra que a verdade irrestrita é um remédio forte". Ocampo é mais flexível, sorridente, acha importante se posicionar publicamente. E, para isto, comparece a entrevistas e programas de opinião. Os dois se complementam e rendem cenas interessantes. Quando o promotor questiona seu jovem e inexperiente adjunto sobre se ele ainda recebe ajuda da sua mãe, Moreno responde: "Ela não aprova este julgamento. Acha que os militares fizeram o certo. Vai ver foi por isto que eu aceitei." 

Os excessos cometidos devem ser punidos. E o excesso de um lado não justifica o excesso do outro. É aquela história "o errado é errado, mesmo que todo mundo o faça". Este julgamento trouxe esta comprovação à sociedade argentina. Ele foi necessário e um filme que conta esta história também é.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Psicose (1960)

 Tive a oportunidade de rever Psicose recentemente no Telecine Classic. Sou fã da obra do diretor Alfred Hitchcock e, sempre que tenho a oportunidade, revejo suas produções. Neste filme, a secretária Marion Crane (Janet Leigh) rouba 40 mil dólares de seu patrão. Durante a fuga, ela erra o caminho e chega em um velho motel (o "famoso" Bates), onde é amavelmente atendida pelo dono, Norman Bates (Anthony Perkins).

A partir daí, acontece o improvável. Marion, até então, a protagonista da trama, é assassinada com cerca de 30 minutos de filme. O que atraiu Hitchcock a filmar esta história foi justamente o aspecto repentino do assassinato no banheiro. Achamos que estávamos seguindo uma trama com determinada personagem e, ali, muda-se a trama e o protagonista. O diretor propositadamente realizou o início mais longo, com foco no roubo e na fuga de Marion, para que o crime fosse uma surpresa total. Hitchcock, inclusive, insistiu para que não se deixasse o público entrar depois de o filme ter começado, pois os retardatários iriam esperar o momento de ver Janet Leigh, a estrela que interpretava Marion e ela já teria deixado a trama.

Psicose custou 800 mil dólares e faturou 60 milhões de dólares nas bilheterias do mundo inteiro. O filme, a princípio, recebeu críticas mistas, mas, em razão da excelente bilheteria, obteve uma reconsideração que o levou à aclamação da crítica e quatro nomeações ao Óscar, incluindo melhor atriz coadjuvante para Leigh e melhor diretor para Hitchcock.

Filmado em preto e branco, Psicose mantém uma atmosfera de tensão constante, potencializada pela trilha sonora e o aspecto decadente do Bates motel. Sobre o cenário, o diretor esclareceu em entrevista ao também diretor francês, François Truffaut: "Não iniciei meu trabalho tencionando reproduzir a atmosfera de um velho filme de terror da Universal, queria apenas ser autêntico. Ora, não há a menor dúvida, a casa é uma reprodução fiel e o motel também." E Truffaut ainda enfatizou que a composição do ambiente, com a casa vertical e o motel totalmente horizontal é agradável de se ver.

Outro aspecto que o filme explora é o prazer de observar da audiência. Ao acompanhar atentamente o que ocorre na tela, o público muda de interesse e sentimento durante a trama. Começamos acompanhando Marion e torcendo para que ela não seja descoberta; depois, passamos a simpatizar com o solitário e dedicado Norman. Apesar de ele esconder meticulosamente todos os vestígios do assassinato, torcemos para que ele não seja incomodado. Mais para a frente, já mudamos de ideia e queremos que ele seja pego para finalmente esclarecermos o que aconteceu naquele crime.

Sobre a produção, o diretor afirmou: "Creio que para nós é uma grande satisfação usar a arte cinematográfica para criar uma emoção de massa. E, com Psicose, realizamos isso. Não foi uma mensagem que intrigou o público. Não foi uma grande interpretação que transtornou o público. Não era um romance muito apreciado que cativou o público. O que emocionou o público foi o filme puro".  Diretores como ele realmente transformaram o cinema na sétima arte, com  uso de recursos e artifícios próprios só possíveis de serem utilizados  na tela cinematográfica. Eu, como cinéfila,  agradeço.