sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Dogville (2003)

Branca Machado – 21/08/2015


    Dogville é uma cidade no fim de uma estrada. Ela é cercada por montanhas e uma mina abandonada. Possui poucos habitantes.O equilíbrio dessa sociedade é quebrado pela chegada de Grace (Nicole Kidman), que surge na vila ao fugir de gangsteres.
    Dirigido por Lars Von Trier, o filme é composto de um prólogo e 09 capítulos. O prólogo nos ambienta ao inusitado do filme como a falta de cenário, a marcação teatral e o narrador irônico. Durante ele, percebemos sinais do caráter da população de Dogville. Há uma cena em que Chuck (Stellan Skarsgard) repreende o filho Jason por ter dado um osso com carne para Moisés, o cachorro. O filho é seriamente repreendido: “Moisés foi feito para passar fome.” Mais tarde, Liz Hensen (Chloe Sevigny) atende a porta e, ao ver Tom Edison (Paul Bettany), comenta, sem cumprimentá-lo: “Seria melhor se fosse alguém mais interessante. Você tem que vir aqui todos os dias?” Estas pequenas interações sugerem que os cidadãos, no mínimo, não são dos mais delicados.
    No capítulo 01, assistimos a Tom descrever para Grace todos os habitantes da cidade. Novamente, a cena é utilizada para que os espectadores também os conheçam e são introduzidos novos indícios do que está por vir. Tom diz a Grace que a cidade possui pessoas boas e honestas e faz um comentário profético: “Acho que você tem muito a oferecer a Dogville.” No capítulo 02, somos apresentados à rotina da cidade, que, aliás, funcionava perfeitamente sem a heroína. Na tentativa de integrar a nova habitante, Ma Ginger (Lauren Bacall) diz: “Talvez, eu precise de você aqui.” E Mrs. Hensen (Blair Brown) argumenta: “Mas a gente não precisa que ela faça coisa alguma.” E Ma Ginger conclui: “Talvez algo que não precisa ser feito.”. E, assim, Grace é introduzida na dinâmica de Dogville, onde ela se tornará cada vez mais necessária. O narrador (John Hurt, sempre irônico) finaliza: “Havia muitas coisas que não precisavam ser feitas na cidade”.
    Tom é um escritor, que, até então, não havia escrito nenhum livro, mas que prega um rearmamento moral. Sob o argumento de que todos limpam a própria neve, mas não a dos outros; é ele quem convence os habitantes a aceitar receber Grace por 02 semanas para, depois, decidirem, se ela deve permanecer. Ao se integrar à rotina, Grace torna-se amiga de Vera (Patricia Clarkson), cérebro de Bill (Jeremy Davies), mãos de Ben (Jeljko Ivanek), olhos de Mckay (Ben Gazarra) e assim por diante. Ocorre que, apesar disso ou justamente por isso, aqueles cidadãos consideram que estão fazendo um favor a Grace. E nem por um momento se esquecem disso. Quando a situação dela passa de “desaparecida” para “procurada”, por “uma questão de equilíbrio”, o preço fica mais alto. Seu salário será diminuído e ela terá que trabalhar por mais horas.
     À medida que o filme avança, vemos surgir a verdadeira natureza daquela sociedade. Que, muitas vezes, diz uma coisa, mas faz outra. O que eles falam passa longe de significar o que realmente querem dizer. São evasivos, mudam de assunto, respondem outra coisa. São contra, quando determinado tema surge em alguma conversa, mas votam a favor. A falta de paredes no cenário pode representar justamente isso. Nós vemos o que eles tão fazendo em contraposição ao seu discurso. Enxergamos as contradições. Ao mesmo tempo, na cena em que Grace é estuprada, a ausência de paredes demonstra a cegueira do grupo diante do que está tão próximo. Ou ainda, pode ser uma alusão à hipocrisia daqueles personagens. Será que evitam ver? Podem estar fazendo o que sempre fazem: virando a cabeça, mudando de assunto.
    Em Dogville, assistimos ao conflito entre a extrema entrega de Grace e o quid pro quo dos moradores da cidade. Os habitantes não dão nada. Desde que Grace chega, ela paga por sua aceitação. E, dessa forma, surge o embate entre o sistema de trocas estabelecido pelos moradores e a insistente e, às vezes, irritante, servidão de Grace. Este altruísmo exacerbado será plenamente explorado pelos personagens, que constantemente usarão o discurso do equilíbrio, presente, por exemplo, na afirmação de Ben ao subjugar Grace: “Não tenho escolha. Não posso fazer isso de graça.”    
     Ao final, parece que Grace também não tem escolha. As nuvens saem, e ela enxerga a cidade por outras luzes. O altruísmo insistente que, aos olhos de seu pai (James Caan), sempre foi interpretado como arrogância, finalmente sucumbiu. O que os cidadãos fizeram não foi bom o bastante. Grace não se volta contra eles particularmente, mas contra a quebra de suas altas expectativas. E é obrigada a admitir: O mundo ficará bem melhor sem Dogville. E, apesar da quebra da catarse, da ausência da empatia, que Lars Von Trier procura nos impor com a falta de cenário, a ausência de trilha sonora, a narrativa irônica, entre outros artifícios, nós também achamos isso. 

domingo, 16 de agosto de 2015

Aprendendo uma lição

Hoje, eu estava assistindo ao filme "Primavera, Verão, Outono, Inverno...Primavera". Trata-se de um filme oriental e, como a maioria das produções orientais, é um filme lento, com poucos diálogos, imagens lindas e muitos símbolos. De repente, o Rafa sentou no meu colo e começou a assistir comigo. Pensei que logo ele iria sair, mas ele ficou e acabou assistindo uma passagem na qual o mestre dá uma lição no menino. O menino havia amarrado uma pedra em um peixe, em um sapo e em uma pequena serpente e se divertiu muito com isso. O mestre, então, amarra uma pedra no menino e diz que só vai tirá-la, depois que ele encontrar os  três animais e livrá-los da pedra. Após assistir tudo, o Rafa me pergunta: "Mãe, você está precisando amarrar uma pedra nas minhas costas, né?". Fiquei impressionada com o fato de um menino de 04 anos chegar a uma conclusão dessas. E novamente admirada com o cinema e seu processo de identificação. De todas as artes, acho que ela é que mais causa essa identidade. Como a professora Maria de Lourdes Gouveia, afirma: "No cinema, a gente não sente a dor dos outros, a gente sente a nossa".

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Samba (2014)


      


        Branca Machado - 08 de agosto de 2015

        A primeira cena de Samba se passa em uma festa de casamento na qual os convidados dançam alegres num salão. Em determinado momento, a câmera segue o enorme bolo sendo carregado até a cozinha. Sem cortes, passamos por corredores e ambientes com vários tipos de funcionários, chegando, finalmente, ao último ambiente deste grande salão, onde está Samba (Omar Sy); que lava a louça. O plano sugere que, nas camadas sociais ali contidas, Samba, como pobre imigrante ilegal, está no último nível. Há um grande contraste entre o salão e a cozinha e, até mesmo, dentro da própria cozinha. De certa forma, são os contrastes existentes no país. 
        A partir desta cena, passamos a acompanhar Samba, que tenta se legalizar na França há 10 anos. Sua ambição é ser assistente de cozinha, como seu tio, que já é legalizado. Samba é senegalês e acaba detido pelo governo por falta de documentação. Neste momento, passamos também a acompanhar Alice (Charlotte Gainsbourg), uma executiva que está em tratamento de saúde e, por isso, torna-se voluntária em uma ONG que ajuda imigrantes ilegais. Alice conhecerá Samba na detenção ao tentar ajudá-lo. 
       Dirigido pela dupla de roteiristas e diretores Olivier Nakache e Eric Toledano, também responsáveis por Intocáveis de 2011 e novamente estrelado por Omar Sy, o filme é baseado no romance de mesmo nome da escritora Delphine Coulin. Basicamente, o que vemos é o drama comum aos imigrantes ilegais às voltas com subempregos e sempre com medo de serem descobertos e deportados. Da mesma forma que a relação entre o enfermeiro e o paciente em Intocáveis, o encontro entre Samba e Alice transformará a vida de ambos. 
       Na sede da ONG, vemos russos, árabes, africanos. Muitos não falam francês, alguns falam um pouco, mas, em comum, todos querem ficar no país. Vemos também uma Paris desconstruída. Os pontos turísticos aparecem de forma marginal como quando Samba realiza a limpeza das janelas  de um edifício no La Défense, próximo ao Grande Arco; ou, quando enxergamos uma parte da Torre Eiffel, enquanto o personagem trabalha na fachada de um prédio. Os imigrantes definitivamente não estão a passeio. 
     Samba é um filme bem trabalhado que trata de um assunto delicado na França.  É interessante conhecer o trabalho da ONG e assistir à dinâmica do relacionamento desses imigrantes com os cidadãos franceses. E, principalmente, descobrir que,  apesar de tudo, é possível surgir amizades e, quem sabe, amor, no meio de todo o drama. Ao mesmo tempo em que se é estrangeiro e ilegal, os imigrantes vivem naquele país, relacionam-se. E, à medida que se relacionam, tornam-se menos estranhos no país em que escolheram viver.