quarta-feira, 3 de junho de 2020

Nada Ortodoxa (2020)

Ao assistir à série do Netflix Nada Ortodoxa, várias vezes me veio à cabeça o pensamento “Cuidado com os limites: eles deixam os outros de fora e prendem você dentro”. Porque, para mim, é isso que acontece com o radicalismo; seja ele religioso, político, ideológico ou de qualquer outro tipo. O radicalismo te impõe limites rígidos demais e exige um certo grau de alienação para que possa ser mantido. 
A série de 04 episódios retrata a vida de Esther (Shira Haas) dentro do bairro judeu Williamsburg em Nova York. Ali, se pratica um judaísmo ultraortodoxo. Como descreve uma personagem em certo momento do filme: “Em Williamsburg, não tem youtube.".No início, tive dificuldade, inclusive, em perceber que se tratava da época atual e que a cidade era Nova York. Para uma comunidade se manter daquela forma, realmente não é possível navegar pelo youtube ou mesmo possuir um smartphone. Nesta Nova York, não tem Quinta Avenida, Central Park e, claro, Times Square. 
Na história, baseada na autobiografia de Deborah Feldman, acompanhamos a protagonista Esther de 18 anos em dois momentos diversos de sua vida, mas próximos: os preparativos e o primeiro ano de seu casamento com Shapiro e sua fuga e chegada a Berlim. Aos poucos, entendemos por que Esther não deu conta do que sua vida seria. Ela chega a avisar ao marido no dia em que se conhecem: "Você precisa saber que não sou como as outras garotas. Sou normal, mas.... sou diferente.". 
Nas cenas que se passam no bairro, acompanhamos os costumes daquela comunidade. Esther recebe instruções sobre sexo de uma conselheira: "Eu vim te ensinar a ser uma boa esposa. O homem é o doador. A esposa, a receptora.". Após o casamento, ela tem seu cabelo raspado. Ao não engravidar, é considerada uma péssima esposa. Gosta de cantar e de tocar piano, mas mulheres não podem fazer isto publicamente: "Uma mulher que canta entre homens é considerada indecente.". Naquela comunidade ultraortodoxa, as mulheres não recebem educação formal e os homens só estudam o Torá. A série pontua diversas vezes as justificativas dos líderes ortodoxos para aquele radicalismo: “Quando nos esquecemos de quem somos, a cada geração, alguém se revolta contra nós. ”.   
Mas o fato é que, ao impor tantos limites, você corre o risco de deixar muita gente de fora. E Esther era diferente. Assistimos aquela menina decidir entre se manter dentro da única forma de vida que conheceu ou seguir seu forte instinto, apesar das inúmeras dificuldades. Na Alemanha, uma amiga pergunta: "Por que você fugiu?" E Esther responde: "Deus esperava demais de mim.". 
A protagonista escolheu justamente Berlim para sair do seu casulo. O gratificante é que o mundo evoluiu e a cidade a recebe de braços abertos. Naquele país, que já esteve em busca da raça pura, ela se junta a um grupo diversificado composto por uma garota do Iêmen, uma israelense, um nigeriano, um alemão com pais poloneses e Robert (Aaron Altaras), o único ali que nasceu em Berlim. Em certo momento, eles vão nadar no lago Wannsee e Robert conta para Esther que a conferência que decidiu criar os campos de concentração ocorreu numa casa do outro lado do lago e ela pergunta: “E vocês nadam nele? ”. Ele sintetiza: “Um lago é só um lago. ”. Esther, então, entra na água e, numa cena simbólica, tira a peruca e mergulha com a cabeça raspada. Ali, ela celebra sua nova vida. Se cada um insistisse em não mudar, muito provavelmente o encontro daquele grupo não seria possível. Constatar este fato é um final feliz.