terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Dois Papas (2019)

 


Dois Papas é uma produção de 2019, dirigida por Fernando Meirelles, com roteiro de Anthony McCarten baseado em sua peça teatral The Pope. Ele é estrelado por Anthony Hopkins, que representa o Papa Bento XVI; e Jonathan Pryce, que faz o Papa Francisco. Disponível no Netflix, o filme trata, por meio da ficção, da misteriosa renúncia do papa Bento XVI e  da consequente ascensão do cardeal argentino, Jorge Mario Bergoglio, ao trono de São Pedro.

O filme concorreu aos Óscares de melhor ator, ator coadjuvante e roteiro adaptado. E merecidamente. O foco é nos dois personagens e os atores são carismáticos e interessantes. Assistimos a um combate ideológico entre eles que acontece em um encontro fictício entre o então Cardeal argentino e Bento XVI  na residência de verão do Castelo Gandolfo em 2012. Neste encontro, o Cardeal requer sua aposentadoria do cargo e Bento XVI não só não a aceita, como confessa ao colega que irá renunciar. Nestas revelações, características diversas e visões de mundo bastante diferentes afloram. Cada um defende seu ponto de vista com inteligência e respeito à opinão do outro, além de  um propósito comum:  Nenhum deles quer que o outro desista. 

Bento XVI é conservador, defende a tradição. Ele passa por um período difícil como Papa já que seu assessor pessoal acaba de revelar documentos que comprometem a igreja católica e todos os dogmas tão defendidos por ele. A crise dos abusos sexuais estava no auge.  Já Francisco, quer mudanças. Acha que a Religião precisa delas.  Francisco em um de seus discursos fala em assumir responsabilidades "Quando ninguém é culpado, todos são culpados." Talvez, referindo-se à postura apaziguadora de Bento XVI durante as revelações. Ele também  alerta para o perigo da globalização da indiferença. Por meio destes diálogos, o filme encontra formas de colocar em cena as questões  que a Igreja Católica e, por que não, o mundo enfrentam no início do século XXI.  

A história começa em 2005 com a morte de João  Paulo II e, em seguida, com o conclave ocorrido na Capela Sistina que elegeu Joseph Aloisius Ratzinger como o Papa Bento XVI. Ali, em uma cena casual, já percebemos a diferença entre os personagens. Bergoglio assobia Dancing Queen. Ratzinger desconhece a música. Ela continua como trilha sonora do início daquela votação. E o contraste entre ela e aquela cerimônia tradicional e secreta aumenta o interesse da cena. Aliás,  não é só neste momento que a trilha contrasta com a temática. Como também os dois Papas são constrastantes entre si. 

Fernando Meirelles afirmou que os diálogos, ainda que se tratem de ficção, estão baseados na realidade: "Todos os diálogos bebem de discursos, entrevistas e escritos (dos dois papas). O que dizem no filme  já disseram em algum momento de suas vidas". São visões contrastantes, posturas diferentes, o conservador e o novo, mas o que se percebe naquela dinâmica é respeito, empatia e até admiração. É assim que devia ser qualquer embate ideológico.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O Gambito da Rainha (2020)


 “O Gambito da Rainha” tornou-se a minissérie roteirizada mais assistida na história da Netflix. Segundo a empresa, a produção foi vista por 62 milhões de usuários, em seus 28 primeiros dias desde a estreia. A busca por "como jogar xadrez" duplicou no Google neste período e o livro de Walter Tevis, que inspirou sua adaptação, retornou à lista de best sellers do New York Times. 

A história inicia-se em um orfanato no estado de Kentucky (EUA), nos anos 1950, no qual Elizabeth Harmon (Anya Taylor-Joy) descobre um talento impressionante para o xadrez ao jogar no porão com Sr. Shaibel (Bill Camp), o zelador, ao mesmo tempo, em que passa a fazer uso de tranquilizantes; que eram prescritos às crianças naquela época.  Assim, acompanhamos o crescimento da protagonista, em meio à descoberta de sua genialidade no jogo e sua dependência crescente em tranquilizantes. 

Apesar de Beth ser uma personagem dura, que não se vitimiza, nós passamos a gostar e torcer por ela. E esta torcida vai para os dois jogos que ela tem de enfrentar: o da vida, que, até então, não trouxe muita sorte para a garota; e o da sua trajetória de sucesso no xadrez, no qual o primeiro pode dar um xeque mate. A personagem tem algo de "o médico e o monstro", com sagas paralelas e discrepantes, às quais assistimos com emoção e apreensão.

A escolha do nome "Gambito da Rainha" deve-se ao movimento no xadrez de sacrificar temporariamente um peão para obter o controle do centro do tabuleiro. O jogador sacrifica algo logo no início do jogo para chegar à vitória depois. Podemos dizer que Beth usa tal estratégia não apenas no jogo, mas também em sua trajetória pessoal.

A série retrata o universo do xadrez, jogadores e competições como um mundo à parte, ao qual somos apresentados. Em uma cena memorável, Beth, é colocada à prova em uma simultânea no clube de xadrez do colégio. Com 09 anos, ela joga com 12 meninos ao mesmo tempo e ganha. Sinceramente, eu nem sabia que as simultâneas existiam.

Acompanhamos, assim, uma órfã, que, jovem e mulher, passa a competir e brilhar em um meio altamente masculino. Sua mãe adotiva, Alma (Mariele Heller), recém divorciada, a acompanha. Nos anos 50, as  duas são outsiders. Elas apoiam-se uma na outra e encontram ali a forma de ficar mais forte no "jogo". Não é só com Alma que Beth pode contar, mas também com Jolene (Moses Ingram), sua amiga no orfanato e muitos outros que conheceu por meio do jogo. A série trata de vários subtemas sem dramatizá-los ou romantizá-los. Exatamente como o xadrez deve ser jogado.

Segundo o "El Pais", um dos melhores jogadores do mundo, Garry Kasparov, afirma que nunca tinha visto uma série que respeitasse tanto as estratégias e os tempos do xadrez "é a mais realista das pouquíssimas obras já feitas sobre um esporte que, definitivamente, é pouco visual". Só por isto, ela já merecia aparecer como dica por aqui. Mas ela é muito mais, ela retrata personagens complexos, nada maniqueístas, tentando ganhar este jogo que é a vida. E este é um jogo que todos nós conhecemos.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Rebecca – A Mulher Inesquecível (Netflix, 2020)

 

Rebecca – A Mulher Inesquecível mal estreou no Netflix e já é sucesso. A adaptação feita pelo streaming  está no Top 10 do canal. Baseada no romance homônimo de Daphne du Maurier, a história traz uma jovem humilde (Lily James) que se casa com Max de Winter (Armie Hammer), um lord inglês. Depois de se conhecerem e rapidamente se apaixonarem, a moça se muda para Manderley, a mansão do marido na Inglaterra. A propriedade está na família há mais de 300 anos e foi um presente de Henrique VIII para a família Winter. Só isso já cria um sentimento de não pertencimento à nova senhora; que, em  nenhum momento, tem seu primeiro nome revelado e é chamada por todos de Sra Winter. Rebecca é o nome da primeira esposa de Max. Onipresente, mesmo depois de sua morte, de alguma forma sua lembrança subjuga e inferioriza a nova dona da casa. E a falta da menção a seu primeiro nome simboliza bem este domínio.

Muito desta atmosfera sufocante se deve à governanta de Manderley, a Sra Danvers (Kristin Scott Thomas),  que venera Rebecca de uma forma doentia. Muitas vezes, não entendemos a postura de Max que parece amar ainda sua falecida esposa e não se importa com a forma com que sua nova esposa é recebida na mansão. Por que, então, ele se casou novamente? O que sabemos é que Rebecca morreu misteriosamente e Max não fala sobre o assunto. Suas motivações são desconhecidas. Ao longo da trama, vamos percebendo que nem tudo é o que parece. E a nova senhora Winter se fortalece diante dos recentes fatos. Na medida em que o mito de Rebecca se desfaz, a heroína ganha forças.

Deste modo, o filme passa por três fases bem diferentes: o romance elegante em Monte Carlo; o suspense misterioso em Manderley; e a imposição da nova senhora Winter. É um filme elegante, que nos instiga, mas não chegamos a nos cativar pelos personagens. Como afirma a Sra. Danvers para a protagonista: "Estamos na Inglaterra. Controle as emoções.".

Esta mesma história foi o tema do primeiro filme americano de Alfred Hitchcock, que ganhou o Oscar de melhor filme de 1940.  O diretor dizia que a obra de Du Maurier não tinha nenhum humor, mas possuía o mérito da simplicidade. Os protagonistas de sua adaptação foram Joan Fontaine e Laurence Olivier. Alguns aspectos plásticos do filme são mantidos nesta adaptação do Netflix como a montagem com um rosto imóvel e um outro rosto que o aterroriza ou a presença da vítima e do carrasco na mesma cena. Por sua vez, Hitchcock fez uma Sra. Danvers que não andava. A Sra Winter ouvia um barulho, e a Sra Danvers já estava ali, em pé, sem se mexer. O diretor optou por essa solução pois queria mostrar o ponto de vista da heroína: ela nunca sabia onde a governanta estava e isto era mais aterrorizante.  

Sobre a versão de Hitchcock, François Truffaut comentou: "Nesse filme, a situação psicológica sobrepõe-se a tudo e presta-se pouca atenção nas cenas explicativas, justamente porque não afetam essa situação.". A afirmação serve também para a adaptação do Netflix. Trata-se de uma obra em que o foco está na transformação dos personagens, em como são subjugados pelos fatos e pelos mitos que se criam. E, quando finalmente se desconstrói o mito, percebemos que a força pode surgir de onde menos se espera. 

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Orgulho & Preconceito (2005)

 


Parafraseando Jane  Austen, “É uma verdade universalmente conhecida que Orgulho e Preconceito é um grande clássico da literatura inglesa.”. Um clássico que além de ter inspirado vários outros escritores ganhou diversas adaptações para a televisão e cinema. Existe até uma versão zumbis. Falarei aqui da versão de 2005, com Keira Knightley, no papel de Elizabeth Bennet e Matthew Macfadyen, no papel do Mrs. Darcy; versão que, recentemente, voltou  ao catálogo do Netflix. 

O que faz Jane Austen ser considerada a primeira romancista moderna da literatura inglesa é que “mesmo não tendo sido uma frequentadora ativa da alta sociedade da época, conseguiu retratar todos os sentimentos, hábitos e intrigas dos ricos nobres de berço de forma extraordinariamente fiel, não poupando o leitor ou suavizando a verdade. Um pioneirismo literário significativo para uma mulher daquela época.”, escreve Clara Ferreira sobre a autora.

Seu segundo romance “Orgulho e Preconceito” foi escrito antes de Jane completar 21 anos. Quem conhece bem o livro sente falta de alguns momentos chaves que foram deixados de lado pelo filme. Mas o longa apresenta um Mrs. Darcy que se encaixa ao imaginário da maioria dos leitores e, quem só o conhece no longa, vai enxergá-lo do modo que Jane Austen escreveu. Da mesma forma, Elizabeth Bennet, e sua personalidade à frente de sua época, está bem representada. Esta é a essência desta obra: Mrs. Darcy e seu orgulho; Elizabeth e seu preconceito.  Às vezes, também o inverso. E como eles são colocados à prova o tempo todo ao longo da trama.

O filme retrata a Inglaterra de 1811, na qual as mulheres só tinham um objetivo: casar-se com um homem que as sustentassem. Principalmente na família Bennet. Com 05 irmãs, e nenhum irmão, a herança do pai das meninas irá para o parente homem mais próximo. As mulheres da família podem perder, inclusive, a casa onde vivem com a morte do pai. Em um contexto assim, casar-se é sobrevivência. 

Há composições de cena muito bem trabalhadas, como quando, ao visitar Mr. Bingley, a mãe e as irmãs de Elizabeth estão sentadas em um sofá juntas, enquanto Elizabeth está sozinha no sofá de frente a elas. Elas são filmadas em plano e contra plano e a montagem simboliza a diferença entre Elizabeth e o restante de sua família. No plano completo, acrescenta-se no centro, mais à frente, entre os dois sofás,  Mr. Darcy, Mr. Bingley e sua irmã. Estão em pé, são a vértice superior deste triângulo. Outra solução interessante é quando Elizabeth está no balanço de sua casa e chove, aparece o sol, faz frio; enquanto ela balança, o tempo passa.

O ambiente é o dos bailes ingleses, jantares da nobreza, repletos de etiqueta e de arrogância. Um terreno fértil para o preconceito e generalizações. Jane Austen é muito hábil em, com sutileza e uma certa ironia, criticar todo este comportamento em suas obras. É bonito ver a desconstrução das posições de Darcy e Elizabeth. 

A grande virada da história está numa carta que o protagonista escreve a Elizabeth. A missiva, faz com que ela passe a enxergar o que ele vê  e isto muda tudo. O personagem que, a princípio, parece ser o vilão, torna-se humano, com suas imperfeições e razões. Do mesmo modo, quando Elizabeth expõe a Darcy os motivos pelos quais ele é o último homem com quem ela se casaria faz com que ele entenda o filtro que ela tem sobre ele e o motiva a escrever a carta. Não deixa de ser uma grande lição de empatia. Da qual, afinal, estamos todos precisados. 


sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Agnus Dei

 

Agnus Dei é um filme franco polonês, de 2016, dirigido e roteirizado por Anne Fontaine. Nele, acompanhamos Mathilde (Lou de Laâge),  uma jovem médica da Cruz Vermelha, que está na Polônia para ajudar os feridos no fim da Segunda Guerra. Mathilde foi escalada somente para cuidar dos franceses, mas começa a ajudar as freiras de um convento polonês de forma secreta. As religiosas foram engravidadas por soldados soviéticos que, por lá, passaram 3 dias abusando daquelas freiras e noviças. Antes deles, foram os soldados alemães. Nesta última invasão, sete freiras ficaram grávidas; algumas outras pegaram doenças sexualmente transmissíveis. A madre superiora está com sífilis...  

A angústia daquelas mulheres é visível. O título utilizado no Brasil enfatiza este conflito, já que Agnus Dei significa "Cordeiro de Deus", aquele que tira o pecado do mundo. E elas se sentem pecadoras. Não são mais puras. Não entendem nem a dimensão do que aconteceu com elas. Mathilde precisa enfrentar inclusive as próprias pacientes que não querem ser tocadas durante os exames. 

Além disso, o que fazer com aqueles bebês? Voltar para a casa não era uma opção, já que, para as famílias cristãs daquela época,  ser mãe solteira (não importando a forma como se deu a gravidez) era considerado vergonha pública. Elas estão perdidas, não podem pedir ajuda para médicos poloneses, pois eles não podem saber o que  aconteceu ali. Se o segredo fosse descoberto, o convento acabaria por si só. Aquelas mulheres tinham, então, que se defender. E Mathilde, apesar de comunista e, desta forma, agnóstica, foi a pessoa que acabou salvando aquelas mulheres. No embate entre a ciência e a religião, ganhou a empatia, a compreensão e a resiliência. A cena em que a médica fuma, olha através da janela, observando a paisagem branca, quando percebe a noviça ajoelhada, rezando sozinha no meio da neve, é emblemática. A razão de um lado, o divino de um outro. Foi preciso transpor esta janela e perceber que , acima de tudo, aquelas eram mulheres que precisavam de ajuda. Naquele momento, sabemos que Mathilde percebeu isto.

Ao longo do filme, a médica descobrirá ainda que o aconteceu com aquelas freiras poderia ter ocorrido com ela... O fato é que, para as mulheres, a guerra acabou, mas os inimigos permaneceram dos dois lados. Quando as resistências e  o preconceito diminuem, a solução aparece e a esperança ressurge. Nesta guerra, que ainda não está vencida, é possível acreditar na vitória.

Como eu contei aqui uma vez, quando escrevi sobre "O Pianista", eu estive na Polônia em 2018. Fiquei impressionada em conhecer um país colorido, moderno, quente em um lugar que, no meu imaginário, era cinza, frio e triste. Por tudo que aconteceu a este país, era para ele estar em ruínas. Mas não. Ele renasceu. E, tal qual as freiras daquele convento, sobreviveu tanto aos alemães quanto aos soviéticos.


terça-feira, 4 de agosto de 2020

Em Pedaços

Em Pedaços é um filme independente alemão que ganhou o Globo de Ouro de 2018 de melhor filme estrangeiro e deu à Diane Krueger o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes. Ela faz o papel de Katja Sekerci que vive em Hamburgo com o marido, o turco Nuri Sekerci (Numan Acar)  e o filho Rocco. Certo dia,  o marido e o menino estão no escritório e morrem vítimas de uma explosão criminosa, tragédia que deixa Katja completamente arrasada.
Dividido em três "pedaços" - Família, Justiça e Mar - o filme  estabelece seu arco dramático  a partir do momento em que  Nuri e Rocco morrem vítimas de um atentado à bomba até pouco depois dos julgamento dos prováveis culpados. Digo prováveis porque eles foram inocentados. Conforme afirma o juiz em sua sentença " os réus foram absolvidos não porque parecem ser inocentes, mas porque as provas apresentadas deixam dúvidas". Nossa sensação, como espectador, é de revolta. Talvez, porque vimos coisas que os julgadores não viram. E temos a certeza que falta a eles. Agora, imaginem a sensação de Katja... O filme dá um close em seu rosto e desfoca todo o resto. E a sensação dela deve ser de desfoque mesmo... Pela história, sabemos que o que a mantém de pé é este julgamento.
No filme, há alguns flashbacks de filmes caseiros realizados pelos personagens em seu cotidiano. Vemos que a personagem principal casou-se com  Nuri, enquanto ele cumpria pena em uma prisão. Depois, descobrimos que ela o conheceu durante a faculdade, na qual ela comprava drogas dele. Mas Nuri foi solto e se reabilitou. Ele e Katja eram uma casal  apaixonado com um passado controverso e que queria viver bem. Ao que tudo indica, a chegada de Rocco trouxe uma mudança para melhor na vida dos dois. Mas este passado ainda cobra seu preço...Por diversas vezes, ela recebe reprovações ou insuniações de que as coisas poderiam ser diferentes se eles não tivessem vivido da forma que viveram.
A história pregressa de Niri é sempre associada à possível causa do atentado e a defesa dos réus usa este mesmo passado para desacreditar o testemunho de Katja durante o julgamento. Muitas vezes, sentimos que o casal está sendo julgado em vez de serem as vítimas da situação. 
Mas a verdade é que Niri morreu por sua origem não germânica e seu filho por ser filho dele... O atentado foi realizado por neonazistas. Simples assim. Percebemos, neste drama, como fazer justiça é difícil; como o in dubio pro reu é para o bem, mas também pode ser muito ruim; como o modo como levamos a vida pode influenciar uma decisão que deveria ser simples; e sobre como, às vezes, querer ser justo demais acaba nos tornando injustos. Outra questão derivada é sobre o quid pro quo: pagar na mesma moeda é justiça? São questões levantadas, bastante atuais e incômodas, e que precisam ser tratadas. 

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Entre Facas e Segredos


O grande mistério que permeia Entre Facas e segredos é: “Harlan Thrombey (Christopher Plummer) se matou ou foi assassinado?”. A princípio, a polícia nem questiona e classifica a morte como suicídio. Mas surge em cena o detetive particular Benoit Blanc (Daniel Craig), que é contratado por um cliente anônimo para questionar esta primeira versão. O detetive possui uma grande fama, teve seu perfil publicado no The New Yorker, e é um típico personagem do gênero como Poirot ou Holmes, que presta atenção a tudo, valoriza detalhes que podem parecer insignificantes e possuem um certo ar blasé. Interessante notar que Daniel Craig, conhecido como o protagonista de 007, deixa o espião cheio de armas sofisticadas para usar uma estratégia puramente mental. Conforme esclarece o detetive: "Eu observo os fatos sem me deixar levar pela emoção ou razão. Eu determino a trajetória, percorro tranquilamente até o final e a verdade cai aos meus pés.". 
Então, o que assistimos a partir da morte de Harlan é a trajetória de Blanc, em conjunto com a polícia, para descobrir os segredos por trás daquela morte, além da verdade aparente. 
Em um primeiro momento, na própria mansão de Harlan, os investigadores interrogam um a um os presentes na festa de 85 anos da vítima, ocorrida na noite de sua morte. Com isso, conhecemos os personagens, estabelecemos a sua relação com o morto, e vemos, ao mesmo tempo, o que eles contam para a polícia e o que de fato aconteceu na cena que é mostrada em tela. Todos têm segredos. E, conforme Harlan afirma a cada um em particular na noite investigada: “Tomei minha decisão”.  E esta decisão não foi benéfica para nenhum dos envolvidos; todos, de alguma forma, dependentes do patriarca morto.
Harlan era um escritor de mistérios famoso e muito rico. Com uma fortuna estimada em U$ 60 milhões, além da mansão e dos direitos autorais, qualquer um dos herdeiros que visse sua herança ameaçada, teria motivo para matá-lo antes disso. São interrogados Linda (Jamie Lee Curtis), filha de Harlan; seu marido Richard (Don Johnson) e seu filho Ransom (Chris Evans);  Walt (Michael Shannon),  filho caçula do escritor; Joni (Toni Colette), nora de Harlan e sua filha Megan (Katherine Langford). Além dos familiares, a casa ainda tinha uma governanta, Fran (Edi Patterson) e  Marta Cabrera (Ana de Armas), a enfermeira particular do anfitrião. 
Como um bom suspense, o filme tem suas viradas e nada é o que parece. Entremeado por um humor sutil e ácido, é um prazer assisti-lo. Os ambientes e a caracterização dos personagens nos lembram o jogo de tabuleiro "O Detetive”. As cenas são bem construídas e, muitas vezes, vemos Blanc e um certo personagem da trama em uma metade da tela, enquanto a família está na outra metade. Existem dois lados ali, mesmo que ainda não se saiba.
E, ao final, o arco se completa ao observamos o mesmo personagem na varanda da casa, enquanto o restante da família está do lado externo, olhando para ele. O confronto está lá novamente. Mas, desta vez,  a família está fora. Na caneca que o personagem segura está escrito: “Minha casa, minhas regras, meu café. ”. Sem dizer mais nada, o desfecho está traçado.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Nada Ortodoxa (2020)

Ao assistir à série do Netflix Nada Ortodoxa, várias vezes me veio à cabeça o pensamento “Cuidado com os limites: eles deixam os outros de fora e prendem você dentro”. Porque, para mim, é isso que acontece com o radicalismo; seja ele religioso, político, ideológico ou de qualquer outro tipo. O radicalismo te impõe limites rígidos demais e exige um certo grau de alienação para que possa ser mantido. 
A série de 04 episódios retrata a vida de Esther (Shira Haas) dentro do bairro judeu Williamsburg em Nova York. Ali, se pratica um judaísmo ultraortodoxo. Como descreve uma personagem em certo momento do filme: “Em Williamsburg, não tem youtube.".No início, tive dificuldade, inclusive, em perceber que se tratava da época atual e que a cidade era Nova York. Para uma comunidade se manter daquela forma, realmente não é possível navegar pelo youtube ou mesmo possuir um smartphone. Nesta Nova York, não tem Quinta Avenida, Central Park e, claro, Times Square. 
Na história, baseada na autobiografia de Deborah Feldman, acompanhamos a protagonista Esther de 18 anos em dois momentos diversos de sua vida, mas próximos: os preparativos e o primeiro ano de seu casamento com Shapiro e sua fuga e chegada a Berlim. Aos poucos, entendemos por que Esther não deu conta do que sua vida seria. Ela chega a avisar ao marido no dia em que se conhecem: "Você precisa saber que não sou como as outras garotas. Sou normal, mas.... sou diferente.". 
Nas cenas que se passam no bairro, acompanhamos os costumes daquela comunidade. Esther recebe instruções sobre sexo de uma conselheira: "Eu vim te ensinar a ser uma boa esposa. O homem é o doador. A esposa, a receptora.". Após o casamento, ela tem seu cabelo raspado. Ao não engravidar, é considerada uma péssima esposa. Gosta de cantar e de tocar piano, mas mulheres não podem fazer isto publicamente: "Uma mulher que canta entre homens é considerada indecente.". Naquela comunidade ultraortodoxa, as mulheres não recebem educação formal e os homens só estudam o Torá. A série pontua diversas vezes as justificativas dos líderes ortodoxos para aquele radicalismo: “Quando nos esquecemos de quem somos, a cada geração, alguém se revolta contra nós. ”.   
Mas o fato é que, ao impor tantos limites, você corre o risco de deixar muita gente de fora. E Esther era diferente. Assistimos aquela menina decidir entre se manter dentro da única forma de vida que conheceu ou seguir seu forte instinto, apesar das inúmeras dificuldades. Na Alemanha, uma amiga pergunta: "Por que você fugiu?" E Esther responde: "Deus esperava demais de mim.". 
A protagonista escolheu justamente Berlim para sair do seu casulo. O gratificante é que o mundo evoluiu e a cidade a recebe de braços abertos. Naquele país, que já esteve em busca da raça pura, ela se junta a um grupo diversificado composto por uma garota do Iêmen, uma israelense, um nigeriano, um alemão com pais poloneses e Robert (Aaron Altaras), o único ali que nasceu em Berlim. Em certo momento, eles vão nadar no lago Wannsee e Robert conta para Esther que a conferência que decidiu criar os campos de concentração ocorreu numa casa do outro lado do lago e ela pergunta: “E vocês nadam nele? ”. Ele sintetiza: “Um lago é só um lago. ”. Esther, então, entra na água e, numa cena simbólica, tira a peruca e mergulha com a cabeça raspada. Ali, ela celebra sua nova vida. Se cada um insistisse em não mudar, muito provavelmente o encontro daquele grupo não seria possível. Constatar este fato é um final feliz.

terça-feira, 5 de maio de 2020

O Estagiário (2015)

Branca Moura Machado 

O Estagiário é um filme de 2015 que está disponível no Netflix. Em tempos de isolamento, sem poder ir ao cinema (...), nossas opções são caseiras e este filme é uma surpresa boa e leve na quarentena. Além disso, ele aborda alguns assuntos que temos tratado sobre o profissional do futuro, competências, reaprendizado e propósito. O filme ficou entre os 10 mais vistos no Brasil quando foi lançado no streaming e conta a história de Ben Whittaker (Robert de Niro), um viúvo de 70 anos que não achou a aposentadoria tudo aquilo de bom que as pessoas falam. Assim, ele se candidata a estagiário sênior de uma Startup de moda, fundada e dirigida por Jules Ostin (Anne Hathaway). Assistimos a um Ben empolgado para o seu primeiro dia de trabalho. Separa seu terno na noite anterior, aciona o alarme que tem no criado e chega a um ambiente moderno, open space, com massagem para os funcionários entre outros diferenciais. Ele é um estranho ali, mas não se intimida com isso. Quer aprender. Ben trabalhará diretamente com Jules, que precisa ter um estagiário para dar o exemplo, já que a contratação de seniores é um projeto do RH de sua empresa. Mas ela não quer um assistente. Não tem tempo para ele. Apesar disto, Ben está lá todos os dias, pontual, elegante e pronto para qualquer coisa. Com uma classe que praticamente não existe mais, ele se torna uma referência para a maioria dos colegas que pertencem à Geração Y – millenials (regidos pelo imediatismo e pelo intenso questionamento). O que mais chama atenção no filme é esta elegância nata de Ben, algo que não é palpável, mas que está em todas as suas ações e é extremamente cativante. De Niro incorporou o papel muito bem. Está longe do protagonista de Touro Indomável ou Taxi Driver. Em certo momento do filme, ele ensina a seus colegas a importância de se carregar um lenço no bolso. Davis questiona: "Qual é a do lenço? Essa, eu não consigo entender." E Ben responde: "É essencial. E sua geração não saber disso é um crime. As mulheres choram, Davis. Tenha um lenço para elas. É um dos últimos vestígios do cavalheirismo.". Para conseguir o estágio, Ben teve que gravar um vídeo e encaminhar aos recrutadores. Só para se candidatar, ele já teve que aprender. Conforme salienta Edlaine Pontes, professora do IBDEC , há dois componentes no filme, contrários ao imediatismo e à ganância atuais: a ideia de que um senhor de 70 anos pode ser fundamental para o bom funcionamento de uma empresa; e a ideia da paixão que envolve o trabalho, paixão sem a qual o fazer se torna mecânico. Segundo a professora: "Ben, agora estagiário, por muito ocupou um cargo de liderança em uma época que não havia tecnologia, mas havia negociação, valores morais e estratégia, e ele começa a compartilhar de forma suave sem imposição, como um mentor, e todos começam a ver relevância em seus conhecimentos". Uma pessoa assim sempre será importante. Trata-se de um senhor de 70 anos que possui várias habilidades de futuro. Tais habilidades, na verdade, são muito mais relacionadas com a vontade do que com a idade. A maior lição do filme, talvez, seja a de que a disponibilidade para aprender, ensinar e reaprender são temas atuais para qualquer geração.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Parasita

Branca Moura Machado
Parasita é um filme vertical. A verticalidade está presente no fato de a famíilia  pobre (os Kim) morar no subsolo de uma construção de um bairro já baixo, enquanto a família rica (os Park)  mora em um bairro alto, em uma rua de subida; passa pelo porão existente na mansão e chega a seu cartaz de divulgação (ao lado). O longa é construído em cima deste norte e sul. Ele não é sobre o bem contra o mal. É sobre como uma desigualdade social tão intensa, de forma natural, acaba colocando um grupo no lado oposto de outro: um em cima; outro, em baixo. 
Dirigido pelo sul coreano Bong Joon-ho  e vencedor de quatro Oscars (melhor filme, diretor, roteiro original e melhor filme estrangeiro), Parasita conta a  história dos Kim que manipulam os Park  de forma a todos os membros da primeira família começarem  a trabalhar para a segunda. Os Kim não passam a trabalhar para os Park de forma honesta. Eles manipulam os fatos para conseguirem os empregos e nunca se assumem como parentes (pai, mãe e filhos). E a verdade é que eles não querem só o serviço e o salário... De certa forma, eles querem usar os Park como hospedeiros. Mas não são só eles. E, quando parasitas descobrem concorrentes, eles passam a competir entre si...
Parasita passeia por diversos gêneros. É profundo, mas, ao mesmo tempo, um thriller que prende nossa atenção do início ao fim. E nos surpreende. Surpreende bem. Como descreve o cineasta mexicano Guilherme Del Toro:  "Dizer que este é o melhor filme de  Bong Joon-ho  significa muito para mim. E é. Um filme cheio de tristeza, inteligência e profundidade. Irreverente, mas sensível. Impressionante"
A cena em que os Kim fogem para casa em meio a uma tempestade e descem, descem escadas, descem mais, para chegar em casa e ainda descer  mais um pouco foi realizada com maestria pelo diretor. Parece que aquela descida não tem fim. Chega a ser uma alegoria o tão baixo os kim chegaram naquele dia. Ao mesmo tempo,  os Park estão tão alienados que não percebem o que acontece debaixo de sua mesa de centro...A tensão do filme é construída nestas diferenças que se acumulam. Algumas vezes, não sabemos quem é parasita de quem. Os empregados contam com aquele serviço para uma sobrevivência quase visceral; por outro lado, os patrões são totalmente dependentes deles em vários aspectos. No caso do filme, esta dependência beira a ingenuidade. 
São condições tão díspares que um mero comentário da patroa sobre como a tempestade do dia anterior limpou o céu para o aniversário do filho pode ofender profundamente o motorista, que teve tudo o que possuía levado por esta mesma tempestade. Neste dia, Dona Kim está descansada sem saber o grau de exaustão e a inquietude nas quais seu funcionário se encontra. A empolgação dela já o machuca. É neste limite tênue entre "o sul e norte" que as tensões explodem e trazem um final memorável e impactante. Em uma trama sem bem, nem mal, a conclusão ironicamente está à altura de um roteiro maniqueísta. E  Parasita não precisou de um grande vilão para terminar assim... só precisou de uma dinâmica social exageradamente vertical.