quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Maid (série da Netflix)


 Maid é uma série de 10 episódios da Netflix que mostra a história de Alex (Margaret Qualley), uma mulher de 20 e poucos anos que vive com o marido Sean (Nick Robinson) e com Maddy,  a filha do casal de 03 anos em um trailer. Certa noite, Sean bebe demais e começa a quebrar objetos dentro de casa. A atitude é uma evolução do comportamento abusivo do marido. E a tendência é piorar. Alex não quis esperar. Por ela e pela filha, ela foi embora sem dinheiro, sem emprego e, praticamente, sem bagagem. A trama é  baseada no livro de Stephanie Land, que conta a história real de como deixou para trás um relacionamento difícil e passou a trabalhar como empregada doméstica para dar uma vida melhor à Maddy. 

A partir daí, acompanhamos a difícil e sacrificada busca da protagonista pela sobrevivência após esta decisão.  Ela procurou ajuda na Delegacia de Mulheres, mas teve dificuldade em comprovar a violência. O abuso psicológico não é palpável. Tanto seu pai (Billy Burke), quanto sua mãe (Andie Macdowell) simpatizam com Sean e não entendem o motivo pelo qual Alex decidiu sair de casa. Em muitas cenas, percebemos como é complicado para a protagonista explicar sua decisão. Em certo momento, para nós, aflitivo, a filha não consegue o testemunho do seu pai - que viu determinada situação entre ela e o marido - mas afirmou não ter achado nada demais. Talvez, para ele, seja até uma negação. Pois, ao admitir que Sean teria feito algo errado, teria admitido vários erros próprios...O fato é que não deveria ser tão difícil para Alex explicar sua decisão. A reflexão que se deveria fazer é por que as coisas chegaram ao ponto de ela sair de casa praticamente só com a roupa do corpo? Por que, em nenhum momento, Sean é questionado ou censurado por ter deixado a situação a chegar neste ponto? No caso dele, há sempre uma explicação (própria ou de terceiros); uma compreensão por ele beber, ser abusivo ou, às vezes, tornar-se violento. Andie MacDowell, em uma entrevista, comenta: "Acho que o livro e a série são uma forma de que as mulheres vejam outra mulher dar os passos certos para mudar sua vida, ser consciente de que foi vítima de abuso. Em Maid, você percebe que há diversos tipos de abuso e alguns não são reconhecidos como tais." Narrativas como esta podem ajudar no entendimento de que decisões como a de Alex não vêm do nada. Não são frescura. Muito menos, loucura. É uma escolha difícil, doída." E ainda tem o outro lado da moeda. Na série, a personagem enfrenta tanta dificuldade em arrumar um emprego, abrigo, cuidados para a filha, que, algumas vezes, nós, espectadores, pensamos que, talvez, fosse melhor ela voltar para Sean. Esta é a grande identificação que a história nos traz. Ao nos colocarmos no lugar dela, colocamo-nos no lugar de todas as mulheres que passam por este conflito e passamos a entendê-las de uma forma menos superficial, menos simplista.  

Não há soluções fáceis ou coincidências milagrosas na trajetória da protagonista. As lembranças de sua infância ecoam todo o tempo todo e ela luta para que a filha não tenha estas mesmas lembranças. Ao mesmo tempo, ecoam números em sua mente. Na tela, aparecem os cálculos entre os dólares que ela possui e os que ela tem que gastar; com um resultado sempre negativo... Apesar da batalha que trava, Alex tem sempre um sorriso, uma palavra doce e um momento especial para compartilhar com Maddy. E é assim que entendemos sua força. 

Ao assistir Maid, entendemos a escolha de muitas mulheres em permanecer em um relacionamento abusivo. Ou voltar para um, depois de terminado. Não é simples sair. Requer coragem, firmeza e muito sacrifício. Não há garantia de que as coisas ficarão melhores ao terminar a relação. O que Alex sabia é que, ao sair de casa, a vida dela podia até não melhorar; mas que, se permanecesse, iria piorar. E isto já é motivo suficiente. 

Sociedade do Cansaço (série da GNT)


 Na coluna de ética da edição do mês de Setembro, "O lugar da pausa", Mônica de Aquino mencionou  o livro "A Sociedade do Cansaço" do filósofo coreano Byung-Chu Han, sobre o qual comentou:"O livro foi escrito em 2010, mas parece mais atual do que nunca - neste momento em que são cada vez mais recorrentes os esgotamentos físicos e psíquicos e doenças como o burnout e a exaustão. Em uma sociedade marcada pela aceleração e pela hiperatividade, com a movimentação excessiva tornando-se um valor em si mesma, Chu Han lembra a importância de parar e da capacidade de hesitar. "

Esta obra de Byung-Chu Han inspirou uma série documental nacional de mesmo nome exibida no canal GNT. Em cada um dos episódios são tratados efeitos como ansiedade, depressão, insônia e distúrbios alimentares; resultantes desse cenário de exaustão da atualidade. No centro desta temática, são abordados os prováveis causadores destes efeitos: trabalho, internet, lazer, padrão estético, remédio, sono, relacionamento, consumo, positividade tóxica e necessidade de segurança.

Em um mundo no qual o desempenho saiu da esfera exclusiva do trabalho, o descanso é visto como ineficiência. Então, daí o cansaço crônico, não percebido. Conforme se afirma no primeiro episódio "Trabalho me cansa", a sociedade adoeceu e se adaptou a esta doença. O indivíduo é considerado o único responsável pelo seu sucesso. E nem percebe que se autoexplora e chama de sucesso. No episódio, são tratados fênomenos como a uberização, o trabalho sob demanda, que dependem de uma avaliação que, muitas vezes, chega a ser invasiva. Neste cenário, o trabalhador não tem mais garantia de quanto vai ganhar ou quanto tempo vai trabalhar. 

A série, possui um total de dez episódios, todos têm no título a temática que será focada, acompanhadas da aceitação: "me cansa". Capítulos como "Perfeição me cansa" e "Remédio me cansa" buscam refletir sobre como chegamos a esse ponto de cobrança e o que podemos fazer a respeito. Talvez, o primeiro passo seja realmente admitir o problema como os títulos nos sugerem.

Sociedade do Cansaço inclui entrevistas com especialistas como Gilles Lipovetsky, filósofo francês e teórico da Hipermodernidade, Ailton Krenak, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro, Maria Homem, psicanalista, professora e pesquisadora, que fazem análises e questionamentos sobre os temas e apresenta também depoimentos de personalidades, afetadas por esses assuntos. "Foram meses de pesquisa de conteúdo, personagens e especialistas que permitiram que o programa informe com a maior credibilidade possível e que possa gerar uma reflexão no público sobre a forma como estamos lidando com as pressões que a Sociedade do Cansaço nos impõe", conta Patrick Hanser, diretor geral da série. 

A pergunta que se faz a cada início é "Como é que chegamos até aqui?". Não creio que esta seja a principal questão, mas sim "Como é que saímos daqui?". Tratar do tema, perceber as consequências, pensar sobre são um bom começo. E, durante a exibição, alguns direcionamentos já nos são sugeridos como " Na sociedade da selfie, é preciso virar  a câmera para o outro lado e buscar as relações"; ou "As pessoas precisam de um senso de controle do seu  tempo. E, com este controle, elas orientarão sua vida ao aprendizado". Fica a dica.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Lisbela e o Prisioneiro

 

Lisbela e o Prisioneiro é um filme nacional de 2003. Trata-se do primeiro trabalho do diretor Guel Arraes realizado exclusivamente para o cinema. Antes disso,  ele havia lançado  “O Auto da Compadecida” e “Caramuru – A Invenção do Brasil”, concebidos originalmente como séries de TV. O filme é curioso, envolvente, além de se tornar um conto de fadas tipicamente nacional. E, como tal, passa-se no interior do Pernambuco, possui como vilão um matador de sangue frio Frederico (Marco Nanini), nascido em Alagoas. Leléu (Selton Melo) é um conquistador e trabalhava no circo, até que um dia foi preso, por desonrar uma moça virgem. Lisbela (Débora Falabella), por sua vez, é uma mocinha típica: sonhadora, idealista e apaixonada por filmes. Logo que a produção estreou, ganhei o apelido de Lisbela na minha família. Pelo fato de a heróina ser cinéfila. Em uma cena, em que está em uma sala de cinema, ela descreve seu encantamento: "Adoro essa parte. A luz vai se apagando devagarzinho. O mundo lá fora vai se apagando, devagarzinho. Os olhos da gente vão se abrindo. Daqui a pouco, a gente nem vai se lembrar que está aqui." Esta sensação que só a exibição numa sala escura nos permite, esta desacelerada, torna-se cada vez mais necessária em um mundo que nos impõe uma pressa, muitas vezes, sem sentido.

Co-escrito por Guel Arraes, o filme teve como base a peça de autoria de Osman Lins de 1964. Os ideais apresentados na peça consistem em rebeldia contra o autoritarismo presente nas regiões do interior nordestino. O filme é narrado basicamente pelos comentários de Lisbela a respeito dos filmes que vê e que traduzem, ao mesmo tempo, a história que aguarda ela e Leléu. Lisbela vive sonhando com os galãs de Hollywood dos filmes a que assiste. Mas Leléu não é um galã de Hollywood. Imperfeito, é um príncipe às avessas; e o que o redime é sua paixão por Lisbela. Em certo  momento, Lisbela pergunta a Leléu: - “ Você nunca gostou de uma mulher?” e ele responde: - "Sim. Mas gostava de todas ao mesmo tempo. Nunca gostei de uma só para sempre...” 

O filme trabalha a metalinguagem e consegue nos transmitir o mesmo encantamento que a heroína tem pela sétima arte. Lisbela narra sua vida como se estivesse comentando um filme a que assistiu com alguém, mas ela está assistindo e narrando o filme de sua vida, que, no fundo, é o fime a que estamos assistindo. Em certo momento, ela comenta: "Eu queria ser artista de cinema, como as dos filmes americanos." E Leléu responde: "Mas tem filme nacional também." Lisbela: "Só que apenas nos filmes americanos as histórias são bonitas. Histórias como a nossa costumam acabar mal”. Então, o filme brinca com sua própria história. E esta dinâmica nos encanta e nos diverte.

Lisbela e o Prisioneiro é um lindo representante do cinema nacional. Sua cena final, que se estende além dos créditos, é uma grande homenagem não só ao cinema, mas também às salas de cinema. E, como já disse, em uma época em que acelerar parece ter virado regra, sentar em uma sala escura e se permitir entrar numa história por duas horas tornou-se disruptivo. É possível e necessário ver além dos créditos. 

 



terça-feira, 17 de agosto de 2021

Nomadland

 


'Nomadland', de Chloé Zhao, é o vencedor do Oscar/2021 de melhor filme, direção e atriz. O longa lembra um documentário e acompanha a personagem Fern (Frances McDormand) durante cerca de um ano em sua trajetória pelos Estados Unidos atrás de empregos temporários e tendo como lar sua van.

A personagem é apenas uma de inúmeros americanos que rodam o país como nômades. Durante o filme, este modo de vida é comparado ao desbravamento do 0este americano, a jornada da conquista. Em certo momento do filme, em um dos acampamentos, declaram para Fern: "Você é uma das sortudas que nasceu nos E.U.A." De certa forma, este modo de vida é tradicionalmente americano e relacionado a uma liberdade almejada. Conforme Fern explica, "Eu não sou uma sem-teto. Eu só não tenho uma casa." Para mim, o filme mostra contradição entre este discurso da liberdade idealizada e o que realmente vemos na tela. Além disso, viajar em busca de subempregos é o que os permitem sobreviver. 

A impressão é de que este modo de vida é a única saída para a sobrevivência financeira  e emocional destes personagens. São idosos, que não possuem uma aposentadoria com que contar. Ou, pelo menos, uma com que consigam viver. São também pessoas solitárias, com histórias de vida trágicas. Portanto, para mim, fica difícil a comparação com o desbravamento. Na conquista do oeste americano, havia um futuro; no filme, só um passado e uma total falta de perspectiva. 

Fern começa e termina o filme trabalhando na Amazon no período do Natal. Entre um período e outro, ela passa por fast foods, é anfitriã de campings, trabalha na coleta de beterraba, enquanto roda pelo país. O irônico é que, na seleção para  tais empregos, ela chega a afirmar: "Eu preciso de trabalho. Eu gosto de trabalhar." Então, a incoerência a acompanha, pois, para quem gosta de trabalhar, o ideal não seria um emprego temporário e incerto; o que reforça a contradição que perpassa a história.

Marcelo Hessel, em seu comentário no site omelete, escreve: "Essencialmente, o filme concilia suas contradições na montagem. É a partir dela que Nomadland pode ir e voltar o tempo inteiro em registros distintos: flutuar entre o viver livre e o viver mal, entre o trabalho braçal e o ócio criativo, entre o tédio da rotina e o maravilhamento com a natureza."  De certa forma, a paisagem é o que pode compensar aquele modo de vida tão sacrificado e solitário. É ela que traz momentos de alívio e expiação para os personagens. Ao mesmo tempo, como Marcelo Hessel, também pontua, Nomadland retrata como o "trabalho precarizado e a crise imobiliária se assentaram de tal forma que já parecem parte da paisagem americana". 

No filme, eles chamam este modo de vida de nomadismo. Minha impressão é de que na, maioria das vezes,  não se trata de uma escolha por um modo de vida. Aquelas pessoas, por um ou outro motivo, não se encaixam mais em nenhum lugar, não estão mais confortáveis. Como quando Fern sai do quarto aconchegante na casa do filho de Dave (David Strathairn) para dormir em sua van. Ela não se sente mais pertencente há algum lugar. Mas, tampouco, sentimos que seu lar seria a estrada. Para mim, a estrada pareceu a fuga, ou a única opção. 


sexta-feira, 2 de julho de 2021

A Escavação

 


A Escavação é um filme da Netflix baseado numa história real sobre o período em que a viúva Edith Pretty (Carey Mulligan) contratou o escavador Basil Brown (Ralph Fiennes) para desvendar os tesouros que existiam sob seu terreno na propriedade de Sutton Hoo, próxima de Suffolk, no Reino Unido. 

Impossível, para um cinéfilo, assistir a um filme sobre arqueologia e não se lembrar da famosa série Indiana Jones. Por meio de "A Escavação", conhecemos um lado deste ofício, sempre fascinante, sem o glamour e a constante ação de Indiana. A diferença de ritmo entre eles já fica clara na música tema que, neste, é incidental e bastante discreta. A semelhança entre o Basil Brown de Fiennes e o Indiana de Harrison Ford termina no fato de que ambos tinham pais também arqueólogos. Indiana era um brilhante professor universitário, charmoso e quase um super-herói; Basil, autodidata, negligenciado e idealista que afirmava que seu trabalho não era sobre o passado, nem sobre o presente, mas sobre o futuro:  " É para que as gerações saibam de onde vieram. É mais que a guerra que está por vir." 

Fato é que a arqueologia, necessita de técnica, paciência, metodologia e insistência. Durante o filme, acompanhamos o trabalho braçal e cuidadoso que envolve uma escavação à procura da história enterrada por milhares de anos. Você tem que escavar, mas com muito cuidado, conhecer o solo, a mudança de cor que identifica o local em que pode encontrar algum artefato. Se ali pode ter alguma coisa, então, deve-se ter um cuidado e técnica ainda maiores ao escavar. Se chove, deve-se cobrir tudo com lona, uma retirada errada de uma peça encontrada e ela pode se desfazer na sua mão. 

Ao mesmo tempo em que assistimos à esta investigação, descobrimos mais sobre a vida dos nossos personagens.  A escavação inicia-se em 1938, pouco antes da 2ª Guerra Mundial. Com a Guerra, todo o trabalho ali realizado seria suspenso e, por isso, não é à toa, que, durante a escavação, os personagens conviviam com aviões militares britânicos que sobrevoavam o local. Em contraponto ao trabalho metódico e lento, havia a ameaça da guerra os assombrando e cada vez mais próxima.

O fato é que a equipe descobriu muito mais do que, incialmente procurava. E fizeram o que é hoje considerada a maior descoberta arqueológica do século 20.  O que havia sob o solo era um navio funerário de 1,4 mil anos de idade, da época em que a Grã-Bretanha era habitada pelos anglo-saxões. Segundo artigo de Carolina Fioratti, na revista Super Interessante, a descoberta foi revolucionária, e chegou a ser chamada de “Tutancâmon britânico” – uma referência à tumba do famoso rei egípcio, achada em 1923. "Afinal, os pesquisadores consideravam até então que os anglo-saxões um povo atrasado e pouco desenvolvido. A ideia caiu por terra após a chegada das evidências descobertas por Basil Brown. Os artefatos, atribuídos ao Império Bizantino e ao Oriente Médio, remetem a uma sociedade que admirava a arte e possuía ambições comerciais."

O arco dramático do filme se encerra, quando, após assistirmos todo o esforço da escavação e o brilhantismo da descoberta, vemos novamente o navio ser enterrado. Irônico. Cruel. Necessário. Mas o bom é que a verdade, uma vez escavada, saiu de lá e muda a história para sempre.


terça-feira, 1 de junho de 2021

Soul

 

    Soul é o vencedor do Oscar de melhor filme de animação 2021. De certa forma, ele é uma grande reflexão sobre a vida e o que fazemos dela. E representa bem aquela frase de John Lennon: "a vida é aquilo que acontece, enquanto você está fazendo planos". Dirigido por Pete Docter, o filme apresenta o primeiro protagonista negro da história da Pixar. Joe Gardner (dublado por Jamie Foxx no áudio original) é um pianista de Jazz que sonha em fazer sucesso nesta profissão. Sua grande referência é seu pai, que também era músico, e o levou, quando criança, a um show: "Música de improviso, meu filho. É uma das nossas grandes contribuições para a cultura.". 
    Não por acaso, no mesmo dia em que Joe recebe, não muito animado, a notícia de que será efetivado na escola na qual leciona música; ele recebe o convite dos sonhos: tocar piano no quarteto de jazz de Dorothea Williams (Angela Basset). Em sua empolgação, afirma: "Eu morreria feliz, após tocar com Dorothea!". Ocorre que a vida não espera. E Joe sofre um acidente antes de que o show de fato ocorra.
     Ao chegar na grande escadaria que o levará ao portal do além vida, a alma de Joe não aceita aquele destino, e desce, desce, desce, até cair e chegar na pré vida. Ali, conhece a 22 (Tina Fey), uma alma que não quer viver. Apesar de ter tido mentores, como Abraham Lincoln, Gandhi e Madre Tereza, 22 nunca foi convencida a descer para a Terra e ter a experiência da vida. Joe passa, então, a ser o seu mentor, e temos ali, de um lado, uma alma que quer voltar à vida a qualquer custo; e, do outro, uma que não foi convencida a viver nem por Carl Jung. Sobre o psiquiatra, 22 comenta que ele disse a ela: "Meu inconsciente repudia seu ego". A dinâmica entre Joe e 22, de certa forma, personagens antagônicos, e suas reflexões são o ponto alto do filme e nos faz refletir o tempo todo sobre nossas próprias vidas. 
    O filme apresenta um grande contraste visual entre o mundo das almas, que é minimalista e tranquilo e dos vivos, em Nova York, que é realista e cheio de detalhes. A história trabalha conceitos como propósito, missão e sentido da vida. Ao final, uma das Zés, instrutoras do pré vida, afirma que está no ramo da inspiração, na missão de guiar a pessoa pelas suas próprias vivências e interesses. A representação das Zés tem clara inspiração cubista, numa representação contrária ao realismo proposto nas cenas em Nova York.
    Soul é também o tutor do público. Em certo momento, quando 22 se empolga com o gosto da pizza, ou com o céu visto da Terra, e afirma que sua missão pode ser curtir estas coisas, Joe  estranha e diz "Isto é só a vida.". Inevitável, nesta hora, pensarmos: "Só?!" A mensagem que fica é que a vida é toda hora. Todo dia. Cada coisa. E isto não é só. Isto é tudo. 

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Druk - Mais um rodada

 

Druk é o vencedor do Oscar de melhor filme internacional em 2021. Dirigido por Thomas Vinteberg, o longa dinamarquês gira em torno de quatro professores que resolvem fazer um “experimento”. Matheus Targueta, mestrando em História pela PUC-Rio, em artigo para a Revista Escuta, descreve desta forma o estado emocional dos quatro personagens: “suas relações amorosas já viram dias de maior fervor e paixão; eles já foram seres humanos e professores mais inspirados e inspiradores.”. Assim, para reagir a esta situação, eles decidem testar a controversa teoria de que serão mais felizes e bem-sucedidos vivendo com um pouco de álcool no sangue.

A teoria existe. O psiquiatra norueguês Finn Skarderud afirma que a receita para a felicidade é o acréscimo de 0,05% na quantidade de álcool no sangue. Aproveitando esta premissa, os desmotivados Martin (Mads Mikkelsen), Tommy (Thomas Bo Larsen), Nikolaj (Magnus Millang) e Peter (Lars Kristian Ranthe) partem para a experiência. O problema é que, ao longo dela, eles não se contentam com a meta inicial. E, na medida em que o experimento avança, novas fases surgem: 

  • Fase 01 - o consumo diário de álcool, para regular a taxa de 0,05%, objetivando coletar evidências sobre os efeitos psicomotores e psicoretóricos, acrescido de uma investigação sobre a melhoria das performances sociais e profissionais; 
  • Fase 02 - consumo de álcool diário em um nível variável e individual para atingir o melhor desempenho social e profissional e psicoretóricos; e, finalmente, a
  • Fase 03 - o nível máximo – efeitos psicológicos emancipatórios.

O filme vai, assim, em um crescendo e, claro, nem todos sairão ilesos de uma experiência tão inusitada. O limite de um não é o mesmo do outro. E este, talvez, seja o maior resultado que eles obtêm desta experiência: cada um deve saber até aonde ir ou, até mesmo, se deve ir. 

        Druk não traz uma mensagem definitiva. Ele mostra a dor e a alegria que podem resultar de um bom drinque. Como afirmou o diretor na cerimônia do Oscar: “O filme vai em muitas direções diferentes.”. Podemos chamar as fases pelas quais os professores passeiam de inspiração, escapismo e inconsciência/inconveniência. Eles convivem com o custo/benefício desta evolução. 

Para mim, ficou a provocação que, de alguma forma, temos que nos reconectar com o que nos motiva, com o que nos inspira, com o que nos emociona. Se o déficit é de 0,05% de álcool, não sei. Mas, se tem algo nos deixando apáticos, precisamos nos movimentar para compensá-lo.  


quinta-feira, 8 de abril de 2021

OS 7 DE CHICAGO

   Branca Moura Machado

Os 7 de Chicago é um filme de julgamento, baseado em uma história real, com elenco estrelar. Basicamente, uma receita de sucesso. A produção original do Netflix concorre aos Oscares de melhor filme, melhor roteiro original. melhor ator coadjuvante (Sacha Baron Cohen), melhor fotografia, melhor montagem e melhor canção original (Hear my voice). Não à toa, ele não foi indicado à melhor direção. Aaron Sorkin, roteirista e diretor do filme, foi melhor em escrever a história que dar ritmo e voz à ela. Ficamos com a sensação de que o filme promete mais do que entrega. Mesmo assim, é uma excelente escolha no catálogo do streaming.

Conhecer esta história ocorrida em Chicago em 1968, no dia da Convenção Democrata na cidade, vale a pena. Vários grupos diferentes, mas com uma causa em comum - o fim da guerra no Vietnã, planejaram manifestações pacíficas e sincronizadas para a mesma data em Chicago. Da mesma forma, o prefeito planejou segurança máxima para combatê-las, se necessário. O que poderia dar errado? A gasolina estava espalhada; era só riscar o fósforo... E foi com uma aproximação policial a um manifestante que tudo "pegou fogo". Resultado? Os 8 líderes dos movimentos foram acusados e julgados por conspiração. E é a este julgamento que assistimos no filme.

O governo processou os líderes de diferentes movimentos políticos por supostamente instigarem manifestantes a um motim. Um mês depois do início do embate judicial, Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II), líder dos Panteras Negras e único negro acusado, após sofrer diversas humilhações e atitudes extremamente parciais por parte do juiz, foi separado dos demais reús e, assim, ficaram os 7 do título. Uma das cenas mais incômodas é justamente a que mostra a sequência de acontecimentos até o juiz Julius Hoffman (Frank Langella) apartar o caso de Bobby. O réu manifestava-se constantemente sobre o fato de não ser representado por um advogado e, desta forma, não poder ser julgado naquele momento. O juiz, então, perdeu a  paciência e ordenou que os policiais o amordaçassem. Bobby passou, então, a acompanhar seu julgamento com uma faixa branca amarrada a sua boca. A reação ao acontecimento foi tão forte, que o  juiz acabou cedendo ao pedido do réu. 

O julgamento durou mais de 06  meses e a manipulação escancarada para que os réus fossem condenados é de embrulhar o estômago. Como William Kunstler (Mark Rylance), o advogado de defesa, manifesta em determinado momento: "Qual a necessidade do julgamento, se todos já são considerados culpados? O fato é que  era um julgamento político, necessário por seu simbolismo. As cartas estavam marcadas e a sensação que temos é de que tudo aquilo se tratou de um grande teatro. O fato de, em alguns momentos, assistirmos a Abbie Hoffman (Sacha) narrar os acontecimentos em forma de Stand up só reforça esta impressão.

Os 7 de Chicago retrata é que uma causa em comum é capaz de unir os mais diversos grupos e, com isso, provocar reações proporcionais (ou desproporcionais) de quem está do outro lado. O longa é um retrato sobre como a dinâmica entre o poder estabelecido e a reação a ele durante o embate no Vietnã funcionava. A vitória na guerra tornou-se uma obsessão e, qualquer manifestação contrária à ela era combatida, não importava de qual lado viesse. E,  com os 7 de Chicago, percebemos que foram de muito lados.

terça-feira, 2 de março de 2021

Mank

 

Em certo momento de Mank, o protagonista Herman Mankiewicz (Gary Oldman) comenta: "Você não pode captar a vida inteira de um homem em duas horas. No máximo pode deixar uma impressão". E é justamente isto que o diretor David Fincher faz com o famoso roteirista retratado no filme. E foi isto também que o próprio Herman e Orson Welles (Tom Burke) fizeram em Cidadão Kane ao retratar um personagem fictício baseado em William Hearst (Charles Dance), magnata da imprensa nos anos 1920 nos Estados Unidos. E que impressão deixaram. Kane ainda hoje é considerado por muitos o melhor filme feito em todos os tempos.

A produção da Netflix retrata o processo de criação do roteiro de Cidadão Kane e a entremeia com flashbacks da vida de Mank (apelido de Herman Mankiewicz), sugerindo de onde pode ter vindo sua inspiração para a história. Não por acaso, Cidadão Kane também passeia na vida do protagonista por meio de flashbacks. Fincher se inspira no clássico em toda a composição da sua obra. Mank conquistou seis indicações ao Globo de Ouro 2021. Por sua vez, Cidadão Kane foi indicado a nove Oscars em 1942 e venceu justamente o de Roteiro Original, dividido entre Herman e Orson Welles.

A essência de Herman Mankiewicz está ali: autodestrutivo, alcóolatra, brilhante e desconfortável; este é o roteirista que vemos na tela. O que ele fala não combina com quem ele é. Ele passeia e convive com o glamour de Hollywood, mas, o tempo todo, confronta este convívio. Em certo momento do filme, o produtor da MGM Irving G. Thalberg (Ferdinand Kingsley) diz para ele: "Eu sei quem eu sou, Mank. Não considero meu trabalho inferior. Não uso meu humor para me manter superior. Parto para a briga pelo que acredito.". Provavelmente, ao falar de si, Irving descreveu com perfeição o desconforto interior que o roteirista sentia. Quando seu agente comenta que o roteiro está bem escrito, mas cheio de diálogos fragmentados, Mank responde “Bem-vindo à minha mente.”. Talvez, ao roteirizar Cidadão Kane, o roteirista ficou à vontade para escrever da forma que gostaria e teve sua catarse em relação a tudo que o incomodava em Hollywood. Por isso, lutou para ter seus créditos no filme, mesmo após ter renunciado a eles por contrato. 

Repleto de homenagens, o filme é um exemplo da metalinguagem no cinema. David Fincher, em sua obra, mostra o roteirista criando a história, introduz seus flashbacks em forma de roteiro, retrata a produção inicial de Cidadão Kane, além de citar diversas situações que refletem sobre a sétima arte.

Louis B. Mayer (Arlis Howard), em Mank, afirma que o cinema é um negócio onde o comprador só ganha uma lembrança do que pagou, salientando que é preciso caprichar na história. Fincher compreendeu bem esta missão. E nos traz, além de uma impressão de Herman Mankiewicz, as intrigas e corrupção nos estúdios nos Estados Unidos logo após a Grande Depressão. A Hollywood da época do ouro produziu muitas estrelas e obras primas, mas isto teve um preço e o filme retrata estes bastidores. O que tem de fascinante, tem de chocante. Exatamente como o protagonista retratado.