sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Garota Exemplar

Branca Machado – 18/11/2014

    “Garota Exemplar” tem início com um plano da nuca de Amy (Rosamund Pike) e a reflexão de Nick (Ben Affleck): “Quando eu penso na minha mulher, penso na cabeça dela. O que fizemos um ao outro?”. Ao longo do filme, é o que tentaremos descobrir...
    Em seguida, mostra-se a cidadezinha. O relógio marca 07:55. Nick, do lado de fora da casa, procura a esposa, desiste e vai para “O Bar”, um pub em que é sócio de sua irmã Margo (Carrie Coon). Ele comenta: “Estou num dia ruim. Estamos completando 05 anos de casados.” A irmã: “Foi veloz!” Ele completa:"...E furioso”. O filme então passa para o diário de Amy e o relato do dia em que ela conheceu o marido. Por esse depoimento, já começamos a refletir sobre o motivo de Nick ter descrito como “furioso” um relacionamento de início tão doce.
    A partir daí, seremos acompanhados de dois relatos da história daquele casal: a atual, dura e amarga de Nick; e a romântica,  acompanhada de flashbacks, e depressiva do diário de Amy. Somos confrontados com duas verdades. E passamos a ser o juiz de um jogo cujas regras e fatos mudam o tempo todo. Como escreveu Daniel Oliveira para o Jornal da Pampulha: “Da mesma forma que você pode perguntar a um casal sobre seu relacionamento, e um vai dizer que está “ótimo” e o outro “péssimo”, não se trata de saber quem está mentindo ou dizendo a verdade. Mas sim entender quem está atuando melhor a versão em que acredita.” 
    Baseado em um livro de mesmo nome, o filme é bastante fiel a ele. Até porque a escritora Gillian Flynn ajudou a escrever o roteiro. Há uma primeira parte em que a trama é acompanhada do relato do diário e uma segunda que ocorre quando o depoimento de Amy termina: o dia anterior ao seu desaparecimento.  
    À medida que o diário evolui, seu tom passa de romântico para amedrontado. Já Nick apresenta-se, ao mesmo tempo, cético e chocado. Ele é confrontado com descobertas sobre a esposa ao longo da investigação e se surpreende com várias delas. “O que ela faz o dia todo?” Pergunta a policial. Ele: “Não sei. Se mantém ocupada. É de NY. Os padrões são altos.”  Um dos policiais observa: “Não sabe se ela tem amigas, o que ela faz o dia todo e seu tipo de sangue...São mesmos casados?” No Diário, Amy comenta: “Casamento é trabalho duro, ceder e mais trabalho duro”. Sobre a mudança para Missouri onde moram a irmã e a mãe do marido, escreve: “Sinto-me como uma mala trazida por engano.”
    O filme é uma grande metáfora do casamento. Exagerada, um tanto distorcida, mas com a qual nos identificamos. No começo tudo é paixão, os problemas são contornáveis. Mas com uma recessão e 02 empregos a menos depois... A pessoa que conhecemos não se manterá perfeita. Um defeito que era “fofo” torna-se insuportável. Deixa-se de conversar, um não sabe da rotina do outro. Um olhar pode significar aprovação ou total desprezo. E só o casal sabe disso. Por isso, aos olhos de Nick, a versão da esposa não é a versão de todos os outros. Amy, para a opinião pública, é a “Garota Exemplar” sobre a qual seus pais escreveram uma série de livros de sucesso; e isso só piora a situação do marido na investigação do desaparecimento da esposa.
    “Garota Exemplar” lembra os filmes de Hitchcock com uma perversidade latente e certa dose de humor. Há ainda a loira perfeita e dúvidas a respeito do que realmente pode ter acontecido, em meio a  duas versões altamente envolvidas com os fatos. Hitchcock provavelmente teria concluído a história antes. David Fincher continua...E esta perspectiva é ainda mais aterrorizante.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Magia ao Luar


  
Branca Machado – 01/09/2014

    Uma das principais características dos protagonistas de Woody Allen é a misantropia. Stanley Crawford (Colin Firth) não é diferente. Um misantropo está profundamente desapontado com a humanidade e é avesso à convivência social. Como afirma Tia Vanessa (Eileen Atkins), sobre o sobrinho: “Se você fosse mais simpático, poderia ter amigos.” Stanley costuma citar Hobbes: “A vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta". E observa: “Eu teria me dado bem com Hobbes.”
    O personagem é um renomado mágico e, no último espetáculo de sua turnê, em 1928, recebe a visita do colega de profissão Howard Burkan (Simon Mcburney). Burkan pede que o amigo o ajude a desmascarar uma médium que se instalou na casa da família Catledege na Riviera Francesa. O próprio Burkan já havia tentado fazê-lo, mas não tendo conseguido, apelou ao famoso colega que, além de ilusionista, é especialista em descobrir charlatões. Stanley basicamente considera que toda ilusão é truque, e que não existe magia, mas ciência. Médium, para ele, é aquele que fala exatamente o que o outro quer ouvir. Sobre o tema, Allen conta que a mediunidade fez sucesso nos anos 20: “pessoas renomadas como Arthur Conan Doyle levaram o tema muito a sério. Houve todo tipo de situação bizarra, como, por exemplo, fotografias tiradas supostamente de espíritos e que deixaram a população em polvorosa. Sessões espíritas eram muito comuns”.
     A esperança e os benefícios trazidos pela ilusão e os prejuízos e falsidade da mentira são dois lados de uma mesma moeda. Stanley estará em um, Sophie (Emma Stone), a médium em questão, em outro. Em certo momento, a médium confronta o mágico: “Só porque você pode reproduzir meus milagres não que dizer que eles não sejam reais”. Em outro, ela o questiona sobre uma situação na qual ele esteve particularmente iludido: “Você estava feliz! E aí? Não é bom?”. De sua parte, ele afirma coisas do tipo: “O mundo é racional, caso contrário, seria uma loucura”.
    A dinâmica entre eles remete à de Mr. Darcy e Elizabeth Bennet em Orgulho e Preconceito de Jane Austen, cuja série da BBC o próprio Colin Firth estrelou. Stanley não pode admitir ser apaixonado por Sophie; ele é muito superior a ela. O personagem é incapaz de fazer um elogio direto ou ser simplesmente agradável. Ele afirma coisas do tipo: “Nunca pensei que você pudesse ficar tão bonita. Deve ter movido uma montanha para ficar desse jeito”.Seu pedido de casamento vem cheio de preconceito e tal como Elizabeth, Sophie poderia respondê-lo da seguinte maneira: “Por que, com tão evidente desejo de me ofender e insultar, você escolheu dizer que gostava de mim contra sua vontade, razão e, mesmo, contra seu caráter?” E a expressão de Stanley poderia ser a mesma que a descrita pela autora para Mr. Darcy: “A surpresa dele era óbvia; e ele olhou para ela com uma expressão de incredulidade mesclada com mortificação.”
     Nesse debate entre a ilusão versus a mentira, pode-se dizer que um pouco de ilusão ajuda a suportar a vida. Então, por que estamos sempre tentando achar o truque, o que há por trás disso ou daquilo? Será que, de vez em quando, não podemos simplesmente deixar para lá? Exatamente como quando sentamos num cinema e deixamo-nos levar pela história?