terça-feira, 15 de dezembro de 2015

No coração do mar

Branca Machado – 06/12/2015  

           “No coração do mar” conta a história real que inspirou a trama do clássico Moby Dick de Herman Melville. O filme mostra a tragédia do navio baleeiro "Essex" que, em 1820, foi abalroado por uma baleia e afundou. O roteiro é adaptado do livro homônimo escrito pelo historiador Nathaniel Philbrick, que realizou minuciosa descrição da viagem, do acidente e de seus trágicos desdobramentos, como o destino dos tripulantes que tentaram sobreviver em botes, após o naufrágio. Ao comentar este filme, aproveito para homenagear “Evereste”, “A Travessia” e “Perdido em Marte”; filmes de aventura em 3D lançados este ano, dois deles também baseados em histórias reais, que, como este, resultaram em ótimo entretenimento.
           Dirigido por Ron Howard, o filme se inicia com Herman Melville (Ben Whishaw), em 1850, chegando a Nantucket para ouvir o relato de Thomas Nickerson (Brendan Gleeson), último sobrevivente do naufrágio do Essex. Quando partiu com o navio, Nickerson tinha apenas 14 anos. À medida que ele relata os fatos, acompanhamos, em flashback, a história no filme. 
        O marinheiro inicia seu relato da seguinte forma: “Esta é a história de 02 homens, o capitão Pollard (Benjamim Walker) e seu primeiro imediato, Owen chase (Chris Hemsworth)”. Na verdade, quem deveria ser o capitão era Owen por sua experiência nesse tipo de viagem e sua desenvoltura em caçar baleias. Sobre este fato, os donos da companhia de navegação esclarecem: “Você pode ter feito 1.000 viagens, mas o sangue sempre prevalecerá. Por isso, o capitão será Pollard.”.Para o capitão, era a primeira vez em viagens desse tipo. E ele compensa sua inexperiência com arrogância. Pelo menos, até o navio afundar. Depois do acidente, podemos afirmar (finalmente) que estão todos no mesmo barco.
        Na primeira meia hora do filme, observamos como funciona o navio, seu sistema de velas, o esforço braçal dos tripulantes e suas habilidades quase circenses. Percebemos que o capitão passa a maior parte do tempo em sua cabine. Outro fato que o filme procura enfatizar é a diferença da nutrição dos oficiais e dos tripulantes. Na refeição dos tripulantes, não havia carne. E, no livro, ainda salientam que havia diferença entre a alimentação dos tripulantes negros e brancos. Esta desigualdade nutricional fará toda a diferença quando aqueles homens estiverem lutando por sua sobrevivência. 
        Em seguida, acompanhamos o primeiro encontro com uma baleia.  É incrível a coragem da tripulação de ir caçar em barcos que se tornavam minúsculos perto daqueles animais. Eles caçavam com lanças. Tinham que acertar no local exato. E, por isso, chegar bem perto delas. O filme mostra toda essa dinâmica muito bem. Mas, no momento em que a baleia é finalmente capturada, sentimos um mal-estar.  A ingenuidade daquele animal enorme nos comove. Em 1820, a pesca da baleia era comum e a base da economia de Nantucket. Estima-se que entre 1804 e 1876, mais de 225 mil cachalotes foram caçadas por baleeiros americanos. Nesta primeira caçada, o navio produziu 47 barris de óleo de baleia. O objetivo era trazer 2.000. Assim, o navio seguiu em direção ao sul, mas as baleias não eram avistadas. Quando o capitão escuta que no Pacífico, extremo oeste da América do Sul, havia montes de baleias, não hesita em ir até lá.  E o que vemos a partir dali é uma inversão de papéis que podemos até chamar de profética. Ao acabar de maneira irresponsável com a natureza, talvez, um dia, esta mesma natureza ferida acabe com a gente. Conforme relato dos navegantes após este incidente, as baleias de fato tornaram-se mais agressivas, ou, “mais assustadas” e, por isso, mais difíceis de capturar. 
        Ao final, passamos a entender perfeitamente a conclusão de Moby Dick: “Tempos depois de ter vivido o sabor da sua amarga aventura e ter visto o quanto o homem pode ser tolo por razões tão naturais como o instinto animal, e criar seus fantasmas justamente por sua pretensão, Ismael não tem mais vontade de voltar para o mar. Deveras, já vira de tudo.”.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Homem Irracional



Branca Machado, 23/11/2015


      Em “Homem Irracional”, Woody Allen conta a história de Abe Lucas (Joaquin Phoenix), professor de filosofia, especializado em Kant, que começa a dar aulas em Newport. No filme, o diretor retoma temas caros a ele como filosofia x realidade, o acaso, crimes e a obra de Dostoiévski. 

      O professor está completamente frustrado. Não há melhor maneira de descrever seu estado de espírito que sua própria descrição: “O orgasmo já não curava a minha angústia. É muito sombrio quando acabam as distrações...”. O protagonista é um homem desmotivado, que bebe todo o tempo e não se empolga com nada. Está sempre apoiando a mão no queixo e possui aquela barriga de quem não se importa.

     Apesar de seu estado de espírito e, até mesmo por causa dele, o professor provoca uma espécie de fascinação em sua aluna Jill (Emma Stone): “Abe é autodestrutivo, mas brilhante...”.E conclui: “Eu gosto de ficar perto de uma pessoa tão problemática...”. Quando ela leva o professor a uma festa, ele se arrisca na roleta russa, jogo que ele compara ao acaso. Atira duas vezes e explica: “50% é uma chance muito maior que muita gente tem na vida.”. Os alunos o criticam e ele diz: “Esta foi uma aula de existencialismo melhor que qualquer outra.”. A sensação de puxar o gatilho no jogo de azar parece ser a emoção que Abe procura em sua vida.
      Um dia, sentado em um restaurante com Jill, ele ouve uma conversa que o faz respirar novamente. A partir dela, o professor volta a ser criativo, inspirado e, por que não, conquistador? É interessante observar a mudança em seu estado de espírito.No início do filme, Rita (Parker Posey), uma colega de trabalho, leva-o para a praia e ele se senta de costas para o mar; já, com a aluna, depois da mudança, ele finalmente admira a paisagem. E assim ele resume sua virada: “Tem que romper com a razão familiar para ver a vida de verdade. O risco fazia com que me sentisse vivo. ”
      Não por acaso, o professor é famoso por um artigo que escreveu sobre ética situacional, aquela que sustenta que a moralidade de um ato é determinada por seu contexto. Se há um certo e errado, ele é simplesmente definido pelo resultado desejado da situação. Ao longo do filme, compreende-se o apreço de Abe ao tema. A cena na sala de espelhos do parque de diversões é simbólica. Vemos o beijo entre Jill e Abe refletido no espelho. O beijo deformado. Como deformada é a visão que Jill tem de Abe; e a visão que Abe tem sobre a vida.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A Pele de Vênus (2013)

Quando Vanda (Emanuelle Seigner) chega ao teatro decadente e vazio para fazer audição para uma peça, surge quase como uma aparição. Ela está atrasada, é escandalosa e não era esperada. O diretor Thomas (Mathie Amalric) já estava se preparando para sair, quando ela adentrou. E, a princípio, não quer realizar o teste com a atriz. Vanda não tem atitude para ser a heroína do roteiro de Thomas. Mas, no momento, em que representa a personagem, é perfeita. O diretor é seduzido por esta perfeição e aceita realizar o teste com a atriz. 
Também baseado em um roteiro teatral, como Deus da Carnificina,  filme anterior de Polanski, "A Pele de Vênus" desenvolve-se no interior desse teatro. O palco mantém o cenário do musical  “Nos tempos das diligências”, que estava em cartaz previamente. Não por acaso há uma grande cactus no centro daquele palco. O filme baseia-se na peça homônima, escrita em 1870, por Leopoldo Sacher Masoch, jornalista austríaco. A obra, bem como o nome do seu autor, inspiraram o psiquiatra alemão Richard Von Krafft-Ebing a dar o nome de masoquismo ao distúrbio psíquico em que se tem prazer com a dor ou com a humilhação verbal.
Ao retratar a audição para a peça, Polanski encena alguns diálogos e situações dela,  entremeando-os com conversas entre os personagens do filme. Muitas vezes, essas duas camadas sobrepõe-se e, até mesmo, confundem-se. No ensaio, Thomas fará o papel do Conde e Vanda fará o papel da personagem que o seduz e que,  coincidentemente,  chama-se Vanda.
No momento em que a audição começa, dá-se início a um interessante jogo de poder.O mais notável neste jogo é a total inversão de papéis. No começo, o poder está com ele, o diretor que decide, inclusive, se a atriz poderá realizar o teste. Mas, à medida que ela incorpora a personagem, torna-se cada vez mais dominadora e, em certo ponto, passa a dirigir Thomas. Quando, na peça, Vanda é dominada pelo Conde, a atriz e o diretor invertem os personagens que estão ensaiando. Ela passa a fazer o papel dele e ele, o dela. Dessa forma, na encenação, ela domina todo o tempo; o que torna o discurso bastante feminista.E, quando Vanda/Conde amarra Thomas (travestido de Vanda) ao cactus gigante,  vemos  representados o prazer, pelo símbolo fálico; a dor, com o diretor amarrado; e o poder/humilhação, com Vanda/Vênus/Conde ao redor; deliciando-se com a situação. Todos os elementos de que trata a narrativa estão simbolizados nesta cena.
Em certo ponto da peça, Vanda afirma ao conde: “Quanto mais eu te domino, mais eu me sinto dominada.”. Ironicamente, o prazer dela depende do fato de ter alguém disposto a ser dominado. Esta proximidade entre sadismo e masoquismo fez Freud afirmar que o sádico é um masoquista, enquanto o masoquista é um sádico. Além da interpretação brilhante dos atores e da temática controversa,  a narrativa sobreposta é o que torna o filme fascinante. Estamos no filme? Ou na peça dentro do filme? Até que ponto aquela adaptação não é um reflexo da vida de Thomas? Ou de um desejo dele? Quem sabe tudo aquilo não foi uma alucinação? São dois atores, um cenário e muitas possibilidades.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Que horas ela volta?


“Que horas ela volta?” é a pergunta que os filhos costumam fazer a quem os acompanha, quando a mãe se ausenta. No caso do filme, enquanto Fabinho faz essa pergunta à Val (Regina Casé), empregada de sua casa; Jéssica (Camila Márdila), filha de Val, faz a mesma pergunta à Sônia, que é quem cuida dela na cidade natal de sua mãe, Recife. A primeira cena resume essa situação. Assistimos à Val com Fabinho na piscina da casa.  O menino nada e pede para a babá observá-lo em ação; nesse meio tempo, ela telefona e pede para falar com a filha que está longe.

Quantas vezes não pensamos nisso? Nas pessoas que deixam seus próprios filhos em casa para cuidar da casa e dos filhos dos outros? Com isso, acabam tornando a vida dos filhos viável financeiramente, mas não constroem a relação de carinho e cumplicidade que possuem com os filhos dos patrões. O filme mostra essa dinâmica com delicadeza e naturalidade. A sensação é a de que estamos dentro da vida daquela família. E, muitas vezes, podemos encará-la como um espelho. É parecido. Já vimos isso.

No filme, dirigido por Anna Muylaert, acompanhamos Val que trabalha na casa de Dona Bárbara (Karine Teles), Dr. Carlos (Lourenço Mutarelli) e Fabinho (Michel Joelsas) no Morumbi em São Paulo. Ela cuida de Fabinho há 13 anos, numa relação praticamente de mãe e filho, mas há 10, não vê a filha.

A rotina da família vai mudar com a chegada de Jéssica que vem de Recife para tentar o vestibular. Ela, a princípio, nem sabia que a mãe morava na casa dos patrões, não entende e questiona a dinâmica daquela relação. Conforme simplifica para a mãe: “Eles são seus patrões. Não meus”. Ela, senta-se, por exemplo, à mesa da cozinha para tomar seu café da manhã e, quando a mãe a repreende, ela enfrenta: “Vou comer como? Em pé? Você comeu em pé por todos estes anos? ” Por sua vez, Val estranha a altivez da filha: “Sei lá... Ela é segura demais de si. Olha para tudo parecendo o presidente da república. ”

 A presença de Jéssica desequilibra a relação da empregada com a família. Até então, Val não incomodava. Cenas sutis pontuam a evolução do preconceito velado para ações cada vez mais explícitas. E, quando Dona Bárbara resolve esvaziar a piscina, ela, na verdade, esvazia de vez sua relação com a empregada.

“Que horas ela volta?” traz à tona os conflitos de uma relação que é íntima, mas, muitas vezes, deve limitar-se à porta da cozinha; o que fica bem claro em certo momento do filme. Com um final encorajador, saímos com a sensação de que há coisas que podem mudar para melhor. Apenas precisamos pensar sobre elas.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Dogville (2003)

Branca Machado – 21/08/2015


    Dogville é uma cidade no fim de uma estrada. Ela é cercada por montanhas e uma mina abandonada. Possui poucos habitantes.O equilíbrio dessa sociedade é quebrado pela chegada de Grace (Nicole Kidman), que surge na vila ao fugir de gangsteres.
    Dirigido por Lars Von Trier, o filme é composto de um prólogo e 09 capítulos. O prólogo nos ambienta ao inusitado do filme como a falta de cenário, a marcação teatral e o narrador irônico. Durante ele, percebemos sinais do caráter da população de Dogville. Há uma cena em que Chuck (Stellan Skarsgard) repreende o filho Jason por ter dado um osso com carne para Moisés, o cachorro. O filho é seriamente repreendido: “Moisés foi feito para passar fome.” Mais tarde, Liz Hensen (Chloe Sevigny) atende a porta e, ao ver Tom Edison (Paul Bettany), comenta, sem cumprimentá-lo: “Seria melhor se fosse alguém mais interessante. Você tem que vir aqui todos os dias?” Estas pequenas interações sugerem que os cidadãos, no mínimo, não são dos mais delicados.
    No capítulo 01, assistimos a Tom descrever para Grace todos os habitantes da cidade. Novamente, a cena é utilizada para que os espectadores também os conheçam e são introduzidos novos indícios do que está por vir. Tom diz a Grace que a cidade possui pessoas boas e honestas e faz um comentário profético: “Acho que você tem muito a oferecer a Dogville.” No capítulo 02, somos apresentados à rotina da cidade, que, aliás, funcionava perfeitamente sem a heroína. Na tentativa de integrar a nova habitante, Ma Ginger (Lauren Bacall) diz: “Talvez, eu precise de você aqui.” E Mrs. Hensen (Blair Brown) argumenta: “Mas a gente não precisa que ela faça coisa alguma.” E Ma Ginger conclui: “Talvez algo que não precisa ser feito.”. E, assim, Grace é introduzida na dinâmica de Dogville, onde ela se tornará cada vez mais necessária. O narrador (John Hurt, sempre irônico) finaliza: “Havia muitas coisas que não precisavam ser feitas na cidade”.
    Tom é um escritor, que, até então, não havia escrito nenhum livro, mas que prega um rearmamento moral. Sob o argumento de que todos limpam a própria neve, mas não a dos outros; é ele quem convence os habitantes a aceitar receber Grace por 02 semanas para, depois, decidirem, se ela deve permanecer. Ao se integrar à rotina, Grace torna-se amiga de Vera (Patricia Clarkson), cérebro de Bill (Jeremy Davies), mãos de Ben (Jeljko Ivanek), olhos de Mckay (Ben Gazarra) e assim por diante. Ocorre que, apesar disso ou justamente por isso, aqueles cidadãos consideram que estão fazendo um favor a Grace. E nem por um momento se esquecem disso. Quando a situação dela passa de “desaparecida” para “procurada”, por “uma questão de equilíbrio”, o preço fica mais alto. Seu salário será diminuído e ela terá que trabalhar por mais horas.
     À medida que o filme avança, vemos surgir a verdadeira natureza daquela sociedade. Que, muitas vezes, diz uma coisa, mas faz outra. O que eles falam passa longe de significar o que realmente querem dizer. São evasivos, mudam de assunto, respondem outra coisa. São contra, quando determinado tema surge em alguma conversa, mas votam a favor. A falta de paredes no cenário pode representar justamente isso. Nós vemos o que eles tão fazendo em contraposição ao seu discurso. Enxergamos as contradições. Ao mesmo tempo, na cena em que Grace é estuprada, a ausência de paredes demonstra a cegueira do grupo diante do que está tão próximo. Ou ainda, pode ser uma alusão à hipocrisia daqueles personagens. Será que evitam ver? Podem estar fazendo o que sempre fazem: virando a cabeça, mudando de assunto.
    Em Dogville, assistimos ao conflito entre a extrema entrega de Grace e o quid pro quo dos moradores da cidade. Os habitantes não dão nada. Desde que Grace chega, ela paga por sua aceitação. E, dessa forma, surge o embate entre o sistema de trocas estabelecido pelos moradores e a insistente e, às vezes, irritante, servidão de Grace. Este altruísmo exacerbado será plenamente explorado pelos personagens, que constantemente usarão o discurso do equilíbrio, presente, por exemplo, na afirmação de Ben ao subjugar Grace: “Não tenho escolha. Não posso fazer isso de graça.”    
     Ao final, parece que Grace também não tem escolha. As nuvens saem, e ela enxerga a cidade por outras luzes. O altruísmo insistente que, aos olhos de seu pai (James Caan), sempre foi interpretado como arrogância, finalmente sucumbiu. O que os cidadãos fizeram não foi bom o bastante. Grace não se volta contra eles particularmente, mas contra a quebra de suas altas expectativas. E é obrigada a admitir: O mundo ficará bem melhor sem Dogville. E, apesar da quebra da catarse, da ausência da empatia, que Lars Von Trier procura nos impor com a falta de cenário, a ausência de trilha sonora, a narrativa irônica, entre outros artifícios, nós também achamos isso. 

domingo, 16 de agosto de 2015

Aprendendo uma lição

Hoje, eu estava assistindo ao filme "Primavera, Verão, Outono, Inverno...Primavera". Trata-se de um filme oriental e, como a maioria das produções orientais, é um filme lento, com poucos diálogos, imagens lindas e muitos símbolos. De repente, o Rafa sentou no meu colo e começou a assistir comigo. Pensei que logo ele iria sair, mas ele ficou e acabou assistindo uma passagem na qual o mestre dá uma lição no menino. O menino havia amarrado uma pedra em um peixe, em um sapo e em uma pequena serpente e se divertiu muito com isso. O mestre, então, amarra uma pedra no menino e diz que só vai tirá-la, depois que ele encontrar os  três animais e livrá-los da pedra. Após assistir tudo, o Rafa me pergunta: "Mãe, você está precisando amarrar uma pedra nas minhas costas, né?". Fiquei impressionada com o fato de um menino de 04 anos chegar a uma conclusão dessas. E novamente admirada com o cinema e seu processo de identificação. De todas as artes, acho que ela é que mais causa essa identidade. Como a professora Maria de Lourdes Gouveia, afirma: "No cinema, a gente não sente a dor dos outros, a gente sente a nossa".

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Samba (2014)


      


        Branca Machado - 08 de agosto de 2015

        A primeira cena de Samba se passa em uma festa de casamento na qual os convidados dançam alegres num salão. Em determinado momento, a câmera segue o enorme bolo sendo carregado até a cozinha. Sem cortes, passamos por corredores e ambientes com vários tipos de funcionários, chegando, finalmente, ao último ambiente deste grande salão, onde está Samba (Omar Sy); que lava a louça. O plano sugere que, nas camadas sociais ali contidas, Samba, como pobre imigrante ilegal, está no último nível. Há um grande contraste entre o salão e a cozinha e, até mesmo, dentro da própria cozinha. De certa forma, são os contrastes existentes no país. 
        A partir desta cena, passamos a acompanhar Samba, que tenta se legalizar na França há 10 anos. Sua ambição é ser assistente de cozinha, como seu tio, que já é legalizado. Samba é senegalês e acaba detido pelo governo por falta de documentação. Neste momento, passamos também a acompanhar Alice (Charlotte Gainsbourg), uma executiva que está em tratamento de saúde e, por isso, torna-se voluntária em uma ONG que ajuda imigrantes ilegais. Alice conhecerá Samba na detenção ao tentar ajudá-lo. 
       Dirigido pela dupla de roteiristas e diretores Olivier Nakache e Eric Toledano, também responsáveis por Intocáveis de 2011 e novamente estrelado por Omar Sy, o filme é baseado no romance de mesmo nome da escritora Delphine Coulin. Basicamente, o que vemos é o drama comum aos imigrantes ilegais às voltas com subempregos e sempre com medo de serem descobertos e deportados. Da mesma forma que a relação entre o enfermeiro e o paciente em Intocáveis, o encontro entre Samba e Alice transformará a vida de ambos. 
       Na sede da ONG, vemos russos, árabes, africanos. Muitos não falam francês, alguns falam um pouco, mas, em comum, todos querem ficar no país. Vemos também uma Paris desconstruída. Os pontos turísticos aparecem de forma marginal como quando Samba realiza a limpeza das janelas  de um edifício no La Défense, próximo ao Grande Arco; ou, quando enxergamos uma parte da Torre Eiffel, enquanto o personagem trabalha na fachada de um prédio. Os imigrantes definitivamente não estão a passeio. 
     Samba é um filme bem trabalhado que trata de um assunto delicado na França.  É interessante conhecer o trabalho da ONG e assistir à dinâmica do relacionamento desses imigrantes com os cidadãos franceses. E, principalmente, descobrir que,  apesar de tudo, é possível surgir amizades e, quem sabe, amor, no meio de todo o drama. Ao mesmo tempo em que se é estrangeiro e ilegal, os imigrantes vivem naquele país, relacionam-se. E, à medida que se relacionam, tornam-se menos estranhos no país em que escolheram viver. 

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Cupido é Moleque teimoso (1937)

Branca Machado – 07/072015

        A Sala Humberto Mauro acaba de exibir uma Mostra sobre as Screwball Comedies. Estas comédias dominaram o cinema na Era de Ouro de Hollywood (anos 30 e 40).  Tratam-se de filmes irreverentes e divertidos com uma personagem feminina forte e cheia de autoestima. Na época, os papéis femininos cômicos normalmente eram dois: a mocinha bela e ingênua e a bruxa feia e velha. Este terceiro papel de uma mulher autônoma, com vontade própria, era uma novidade. Grandes exemplares do gênero são “Aconteceu naquela noite” (1934)  de Frank Capra e “Levada da Breca” (1938) de Howard Hawks. Sobre as  comédias malucas, o crítico Andrew Sarris afirmou: " Trata-se de uma comédia sexual sem o sexo".
        Em Cupido é Moleque Teimoso, de Leo McCarey, o casal Lucy (Irene Dunne) e Jerry (Cary Grant) casaram-se num impulso e ele teve dificuldades de assumir a nova vida completamente. Assim, o filme inicia-se num clube onde Jerry faz um bronzeado artificial, pois havia dito a esposa que passaria duas semanas na Flórida, mas, na verdade, estava jogando pôquer na califórnia. Sobra a situação, comenta com o amigo: “O que elas não sabem, não sentem.” O problema é que choveu na Flórida no período e ele não sabia disso, mas a esposa sim. Como todas as cartas que Jerry escreveu a ela remetiam ao sol, Lucy percebeu a mentira e, em vez de ficar em casa desgostosa, manteve sua vida social e suas aulas com o professor de canto Armand Duvalle (Alexander D´Arcy). Ao retornar, Jerry descobre que sua mulher está ausente. Intrigado, mas sem querer demonstrar, mostra-se bastante moderno para os amigos que o acompanham que, inclusive, comentam que ele tem uma mente aberta, mais “europeia”. Quando finalmente a esposa chega, ela está com Armand, e ambos estão com roupa de festa. Jerry insiste que a situação não o incomoda, fiel à teoria de que no casamento tem que haver confiança. Porém, após os amigos saírem, Lucy pega uma laranja na cesta que Jerry lhe trouxe de presente e percebe que a fruta é da Califórnia. Neste momento, ele, que na verdade está bastante incomodado, comenta: “Não confio em mais ninguém”. Ela, olha para a fruta e diz: “Sei como você se sente...”.  Jerry e Lucy discutem sobre suas atitudes e novamente num impulso resolvem se divorciar.
        Esta cena estabelece toda a dinâmica do filme, que, numa série de subentendidos e situações não esclarecidas, vai mostrar o casal em situações hilárias em que um provoca o outro e não permitem que seus novos relacionamentos evoluam. Ali, também surge outra caraterística deste tipo de comédia: a aparente incompatibilidade do casal que se torna, inclusive, hostil entre si.O diretor usa cenas que serão retomadas posteriormente numa autorreferência prazerosa. Como, quando Lucy assiste ao show da acompanhante de Jerry, para, mais tarde, repeti-lo. Ou, quando ela brinca de esconder objetos de Smith, o cachorro que tinha com Jerry e, depois, o cachorro por causa desta mesma brincadeira, encontrará um objeto que não era para ser encontrado. Em determinado momento,  Jerry comenta com a futura sogra de Lucy: “Os três serão muito felizes em Oklahoma.”. Esta cena é interessante por que,  no fundo do plano, de frente para o espectador está Jerry. E, de costas para a câmera, mais à frente do plano, estão os três personagens a quem ele se refere. Ele, em contraponto aos três (Lucy, seu atual noivo e a futura sogra). E é justamente Jerry quem pode atrapalhar os planos dos outros personagens da cena.
        O filme pode ser considerado um subgênero deste tipo de comédia, pois aborda um tema recorrente dentro do estilo. Trata-se do casal que se divorcia para depois se casar novamente. Apesar dos personagens retomarem o casamento, o simples fato de se mostrar e discutir o divórcio foi uma grande evolução para a época. É sempre um prazer assistir às mostras que resgatam a história do cinema e nos levam a perceber sua evolução e por que o chamamos de sétima arte. As Screwball Comedies inovaram na temática, na agilidade da narrativa e na ironia dos diálogos. São filmes leves, inteligentes e sempre atuais. Afinal, parece que o cinema evoluiu, mas os relacionamentos continuam cheios de subentendidos e palavras não ditas.

sábado, 4 de julho de 2015

Vendedor de passados (2015)

Branca Machado – 29/05/2015

        Desde que começamos a estudar, ouvimos que é importante conhecer o passado para entender o presente e planejar o futuro. No caso do passado individual, o comum é a afirmação de que são os eventos do passado que determinam o que somos hoje. Mas e, se o que você é hoje, for uma ruptura total com o que ficou para trás?  E, se o seu presente, puder definir o seu passado e não o contrário? Esta é premissa de O Vendedor de Passados, filme de Lula Buarque de Holanda, baseado no livro de mesmo nome do angolano José Eduardo Agualusa.          
     Se não há como mudar a história, compra-se uma outra versão. Vicente (Lázaro ramos) trabalha como este vendedor de passados a partir do que a pessoa é no presente. A história do comprador é construída posteriormente e tem como produtos álbuns de fotografia, certidões de casamento e o que mais for necessário para corroborar o passado inventado como verdadeiro. O trabalho é complexo e dedicado. Acompanhamos Vicente reconstruir, por exemplo, o passado de Ernane (Anderson Müller), um ex-obeso que, quando tinha 08 anos, pesava 60 kg; quando tinha 14, pesava 80 kg; e, quando tinha 16, pesava 130. Não saía mais de casa. Com 34 anos, fez cirurgia bariátrica e várias plásticas. E, então, quis forjar a vida que não teve. Passou a ter ex –mulher, morou no exterior. Até seu convite de casamento, Vicente criou. Ao receber o produto, Ernane expõe seus motivos para ter encomendado uma nova história:  “Eu vou conseguir uma mulher agora, né? Toda mulher solteira se interessa por um homem divorciado e rico.”
        Vicente é também o narrador e sobre o passado ele afirma: “O passado é tudo aquilo que você lembra, o que você pensa que lembra, o que você se convence de que lembra e aquilo que você finge que lembra.” E, se você pode fingir, pode comprar, pode vender...Certo? Para ele, parece que sim.

     Quando surge uma cliente (Alinne Moraes) que simplesmente quer comprar um passado, mas sem dar uma pista de seu presente, a tarefa fica mais difícil para o protagonista. Não há ponto de partida. Até então, Vicente sempre havia criado o passado sem perder de vista a realidade que cerca seu cliente, criando uma história pregressa que fundia ficção com realidade. Ele argumenta que é muito fácil desmascarar um passado completamente novo. Os motivos da cliente por querer começar do zero não são muito claros e este fato trará suspense ao filme. Nos diálogos entre Vicente e Clara, nome dado por Vicente à cliente,  paira sempre uma dúvida do que é ficção e do que é verdadeiro.          
      O filme não aprofunda, mas aborda questões bem interessantes. Leva-nos a repensar nossas lembranças. Provoca também uma reflexão contemporânea sobre a construção de vidas e discursos por meio de novas mídias como Facebook, Instagram, sites de relacionamento, entre outros. Será que, de certa forma, não é isso que se faz lá? O que existe é basicamente uma edição de momentos felizes. Até que ponto esta edição pode resgatar a autoconfiança? Ajudar a superar frustrações? A memória está atrelada à identidade. E não deixa de ser um bom exercício pensar em como teria sido nosso passado a partir de quem somos hoje. 

terça-feira, 12 de maio de 2015

A Teoria de Tudo


 Cambridge, Inglaterra, 1963. Dois amigos andam de bicicleta. Um deles é Stephen Hawking (Eddie Redmayne). Ficamos um tanto chocados, pois não imaginamos que ele foi capaz de fazer coisas como andar de bicicleta. Na verdade, nunca pensamos nisso. E o fato de perceber que ele tinha uma vida absolutamente normal antes da doença faz com que a gente valorize ainda mais o que conquistou depois dela.
De certa forma, A Teoria de Tudo e Para sempre Alice tratam de um mesmo tema: personagens que descobrem possuir uma doença degenerativa e como será suas vidas a partir delas. A grande diferença é que a doença de Alice era na mente e a de Hawking era física. E, como manteve sua mente intacta, Stephen foi capaz de superar enormes dificuldades motoras e realizar grandes conquistas. 
O filme é baseado no livro Travelling to Infinity: My Life with Stephen que Jane Wilde (Felicity Jones), a primeira esposa de Hawking, escreveu sobre o período em que esteve casada com o cientista. Assistimos ao início do relacionamento e do casamento do casal bem como ao início e à evolução da carreira e da doença de Stephen. Vemos o médico dar a dura notícia ao personagem; e Jane ser confrontada pelo sogro sobre o fato de querer se casar mesmo assim.  O médico descreve a Hawking: “Falência gradual dos músculos... É devastador.” E lhe dá uma expectativa de vida de 02 anos. O paciente pergunta: “E o cérebro?”  E o médico responde soturno: “O cérebro não é prejudicado. Os pensamentos continuam lá, mas ninguém saberá quais são eles...” Stephen tinha 21 anos quando foi diagnosticado.
Após a notícia, ele não quer ver Jane.  Quando ela finalmente o encontra, ele explica que está analisando as probabilidades da felicidade. Naquele momento, as dele eram bem baixas. Ela, então, o leva para jogar croquet, em homenagem a um convite dele que ela havia recusado antes. Os movimentos de Hawking já estão bastante comprometidos. Jane segura o choro. Aguenta firme. E assim se comportará por todo o casamento. Ela propõe: “Vamos ficar juntos o tempo que tivermos.” E Stephen adotará o tempo como tema de sua tese.
Mesclado com humor e leveza, característicos do físico, o filme não é pesado. Há diálogos como aquele em que, na comemoração do título de Doutor de Stephen, um amigo pergunta: “Sua doença não afeta o...?” Ele responde: “Não. Sistema diferente. Automático.” E o amigo conclui, bem-humorado: “Isto explica muito sobre os homens.”
Apesar da doença e suas limitações cada vez maiores, Stephen conquistou coisas demais. Seu livro mais famoso,  “Uma breve história do tempo”, foi escrito depois de uma traqueostomia, em que ele perdeu completamente a voz.  Ao lado do brilho, a doença o acompanha de forma cruel. Trata-se de uma evolução e uma degeneração constantes. O corpo e a mente não se falam... Ainda bem que estamos falando da mente de Stephen Hawking e também por ele ter encontrado Jane em seu caminho.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Para Sempre Alice

Branca Machado – 19/03/2015


“Para sempre Alice” começa com um jantar em comemoração aos 50 anos de Alice Howlands (Juliane Moore). Estão presentes Anna (kate Bosworth), sua filha, Charlie (Shane Mcrae), seu genro, seu filho Tom (Hunter Parrish) e seu Marido John (Alec Baldwin). Ela ainda tem Lydia (Kristen Stewart) que está ausente por que mora em Los Angeles e tenta uma carreira artística. Apesar desse princípio festivo, o filme é tenso, já que, se conhecemos sua sinopse, sabemos o que a personagem está prestes a descobrir. 
No primeiro sinal de que algo pode estar errado com Alice, ela diz ao genro: “Minha irmã e eu éramos muito próximas”. Ocorre que ele não havia perguntado nada relacionado ao assunto e Alice complementa: “Não sei por que eu falei isso...”. Logo em seguida, a personagem viaja para Los Angeles, onde fará uma palestra sobre linguística, tema em que é especializada. Não por acaso ela tem um lapso de memória e não consegue se lembrar justamente da palavra léxico, que pode ser definida como todo o universo de palavras que as pessoas de uma determinada língua têm à sua disposição para expressar-se. Quanto maior for o vocabulário do usuário, maior a possibilidade de escolha da palavra mais adequada ao seu intento expressivo. No evento, ela ainda comenta que as pessoas estão ficando tão especializadas que sabem mais sobre cada vez menos, até saberem nada. O que também não deixa de ser uma alusão ao Alzheimer; no qual, como veremos, a pessoa, cada vez mais, tornar-se-á menos...
Em Los Angeles, Alice aproveita para almoçar com Lydia e, ali, ficamos sabendo que ela não aprova abertamente as escolhas da filha e que deseja que ela faça uma universidade. Ela descobre que o marido está ajudando Lydia com contribuições mensais a uma companhia de teatro e questiona: “Pagar para atuar?”. A filha explica: “É a realidade da situação”. De volta a Nova York, ela questiona o marido sobre o fato de ele estar ajudando a filha. E John afirmará: “Eu te contei isso”. Ela diz: “Não. Não. Não Contou”. E pensamos que, provavelmente, ele contou...
Correndo na universidade em que leciona em Nova York, Alice se perde totalmente. Na cena, só ela está focada. Todo o restante do quadro está desfocado. Alice percebe que algo não está normal e procura um neurologista. Na primeira consulta, só se filma o rosto dela. O médico pergunta, faz testes, mas só vemos Alice. No Natal, ela precisa procurar na internet a receita do pudim que sempre fez e se apresenta 02 vezes para a namorada do filho. Assistimos à evolução da doença mental e fisicamente em Alice. E, cada vez que a constatamos, sentimos um certo pesar. O filme nos traz esta realidade. E, tomara, um pouco de compreensão. Compressão com aqueles que estão próximos e possam vir a passar por isso.  Ao descrever sua experiência com a doença, em uma palestra sobre o Alzheimer, Alice cita “A arte de Perder” de Elizabeth Bishop e conclui: “Eu me encontro aprendendo a arte de perder todos os dias”. Bishop, no poema, pede para que se aceite a perda com austeridade. O pior do Alzheimer é que chega o dia em que nem isso é possível, pois não se sabe mais que está perdendo.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Relatos Selvagens (2014)

Branca Machado – 18/01/2015



O cinema, além de vários outros aspectos, funciona como uma ferramenta para que o espectador experimente aquilo que não pode realizar na vida real devido a limites, leis, moral, superego, entre outros. A arte, muitas vezes, proporciona este escape. Os protagonistas de Relatos Selvagens, de certa forma, representam-nos. E esta identificação faz com que a gente se sinta atendido pela narrativa. 

Candidato ao Oscar 2015 de melhor filme estrangeiro, o longa argentino, dirigido por Damián Szifron, mostra 06 episódios nos quais os personagens extrapolam. Quando todos teriam parado, eles continuam. E isso é, ao mesmo tempo, prazeroso e chocante. Alguns episódios remetem a Um dia de Fúria (1993), de Joel Schumacher, no qual Michael Douglas vive situações de stress corriqueiras nas grandes cidades, mas que, juntas, são o gatilho para que ele saia do sério e cometa ações como largar o carro no meio de um engarrafamento, ou, destruir uma cabine telefônica porque o telefone engoliu sua ficha. Outro relato lembra Encurralado (1971), de Spielberg, no qual um homem dirige seu carro pelas estradas da Califórnia, quando começa a ser perseguido por um caminhão gigantesco, que parece querer brincar com ele perigosamente na estrada. Três deles tratam da vingança: a da mulher traída, a do homem que cresceu recalcado e a da criança que se tornou adulta e se encontra com o algoz dos seus pais, que está numa posição particularmente vulnerável. Também não podia faltar um clássico sobre a burocracia do serviço público e a incapacidade do cidadão de escapar dela. Há episódios melhores que outros, mas todos mantêm a qualidade narrativa e prendem nossa atenção. 

Ao longo dos relatos, escutamos diálogos como o da garçonete e o da cozinheira, no qual a garçonete comenta: “Ele é candidato a prefeito. Acredita?” E a cozinheira responde: “Como não acreditar, se são os filhos da p. que governam o mundo?”. Ou como aquele do cidadão que teve o carro rebocado e multado que afirma para o funcionário do departamento de trânsito: “Os que trabalham para delinqüentes são delinqüentes também, empregados desse sistema corrupto.” Tais diálogos sugerem que estamos diante de personagens prestes a explodir diante de um contexto “injusto” e, assim, a reação deles seria “justa”. 

A abertura do filme apresenta uma série de imagens de animais selvagens. Numa associação com aqueles personagens que basicamente agirão pelos instintos. Relatos Selvagens é um retrato do que faríamos sem nossas regras e limites. É bom de ver, mas não tão bom de fazer. A sensação, ao assistir aos episódios, mistura realização com uma certa expiação. Rimos, nervosos, com as atitudes dos personagens. Pensamos “Não...Agora chega... Não acredito que ele vai fazer isso!”. Saímos do cinema e vamos para casa, achando melhor não buzinar para o carro da frente, ou brigar por aquilo que não tem solução. Deixa isso para o filme. Qualquer coisa, a gente assiste de novo.