segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Um dia de Chuva em Nova York

Um dia de chuva em Nova York é um ótimo filme para  se assistir numa tarde... chuvosa. Da linha leve de Woddy Allen, ele nos leva para uma Nova York exuberante, linda e de extremo bom gosto. Os diálogos sarcásticos estão lá, o alter ego do diretor está lá, a hipocondria e a neurose estão lá, mas o filme traz uma qualidade extra na qual o diretor tem se concentrado ultimamente: a estética.
Em sua parceria com o diretor de fotografia Vittorio Storaro,  formada desde 2016, Allen constrói em seu filme o que o crítico Sihan Felix  do site "Canaltech"  chamou de "esculturas de luz no mundo de Allen": "Alguns closes em Gatsby (Thimothée Chalamet) e especialmente em Ashleigh (Elle Fanning) transformam o casal em esculturas angelicais", descreve Sihan. Esta preocupação trouxe às obras mais recentes do diretor um acabamento que não tinham antes. E isto traz um prazer maior em assisti-los. São cenas lindas e bem construídas, nas quais a fotografia também traz significado. 
   Tarde de chuva em NY começa com Gatsby e Ashleigh decidindo passar um fim de semana romântico em Manhatan. Gatsby acaba de ganhar um bom dinheiro no pôquer e Ashleigh, aspirante a jornalista, conseguiu uma entrevista com o famoso diretor de cinema Roland Pollard (Liev Schreiber).
   Ocorre que o fim de semana não acontece da maneira que  Gatsby planejou,  já que, de uma entrevista prevista para durar 01 hora,  Ashleigh é convidada pelo diretor para a exibição de seu mais recente trabalho e passa a seguir um roteiro completamente diferente do percorrido pelo namorado naquela tarde. Acompanhamos o caminho dos dois paralelamente. E, por incrível que pareça, não torcemos para que os dois se reencontrem logo. Queremos acompanhar mais daquelas trajetórias repartidas.
    Naquela tarde, Ashleigh conhecerá um diretor, um roteirista e um ator muito famosos. E Gatsby contracenerá com a irmã de sua ex namorada, Chan (Selena Gomez) em uma cena que está sendo gravada no Soho. Ao longo da trama, escutamos comentários irõnicos e que são a marca do diretor. Como quando Gatsby comenta: "Emy é bonita" e seu amigo retruca: "Para quem gosta de Grace Kelly..."; ou, quando o protagonista reflete sobre a atração das mulheres por homens mais velhos: "Não sei o que há de tão charmoso na perda de memória recente...". 
   Conforme a sinopse do filme descreve, este dia de chuva em Nova York será o suficiente para fazer com que Ashleigh redescubra suas paixões e Gatsby aprenda que só se vive uma vez. Citando a personagem de Chan, ao analisar certa atitude de Gatsby,  ele está em um 6, mas, até a primavera, chegará ao 10, podemos dizer que Allen já esteve várias vezes no 10 e que, neste filme, está no sete. Mas no sete dele. Há certos diretores a que eu vou assistir sem medo de errar. Para mim, seus filmes  já são acima da média. Woody Allen é um deles. Nesta lista, coloco também Billy Wilder, Almodóvar, Hitichcock, Milos Forman, Tarantino; só para citar alguns. É sempre reconfortante  saber que posso contar com eles em uma tarde chuvosa. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Coringa

 Coringa não é um filme de super heróis e também não é um filme sobre um vilão. Pelo menos, não um desses que estamos acostumados a ver nestes já citados filmes de heróis; que se tornaram um gênero. O fato de ser o Coringa acrescenta um contexto ao filme. Mas, se fosse a primeira vez que ouvíssemos falar dele, o filme nos impactaria. Não sairíamos indiferentes do cinema.
Esta versão do personagem, interpretada de forma brilhante por Joaquin Phoenix, não tem a autoestima elevada e nem é um poderoso vilão que acha que pode destruir o mundo. Muito pelo contrário. Ele sofre e não está nada confortável em sua pele. Talvez, por isso, goste tanto de se maquiar. Em determinado momento, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), afirma: “Só espero que minha morte tenha mais sentido que minha vida”.  E comenta com a assistente social: “É impressão minha ou o mundo está ficando maluco?”. Realmente, a Gothan City retratada não possui cidadãos muito diferentes do vilão.  Dirigido por Todd Philips, o longa se passa numa Gotham inspirada na Nova York dos anos 70. E não é só essa inspiração que percebemos, Philips também reverencia os filmes de Scorsese, principalmente Taxi Driver. Trata-se de uma abordagem nostálgica, incômoda e, sombria.
O irônico é que o filme está todo o tempo se remetendo às comédias. É tudo baseado no sorriso, mas não há um momento feliz. Mesmo nos delírios de Arthur, a atmosfera é lúgubre. Há sempre uma contradição, uma incoerência, entre a mensagem, a trilha sonora, os programas a que o personagem assiste, as risadinhas típicas de tais programas, a expressão dele, a carreira de comediante almejada e o que assistimos.
E este contraponto reforça o nosso incômodo. Temos Chaplin na tela e na trilha sonora, mas a nossa reação é inversa. É estranho ver  Chaplin ali. Não por acaso, o personagem sofre de um distúrbio mental que o faz rir ou, até mesmo, gargalhar nos momentos mais inapropriados. Não sabemos se, em algum momento, ele acha graça com sinceridade. As pessoas o criticam, falam coisas desagradáveis, e ele gargalha com a  câmera nele. Aquela gargalhada soa como um grande lamento. Este paradoxo é resumido na seguinte reflexão de Arthur: "Eu achava que minha vida era uma tragédia, mas eu descobri que é uma puta comédia.". 
 Com isto, Coringa acaba por abordar um tema bastante atual. O protagonista comenta:  “É tão difícil ser feliz o tempo todo...”. As redes sociais trouxeram este drama/obrigação para as pessoas: ser feliz/perfeito/bonito o tempo todo. Ninguém é, mas precisa parecer ser e isto é muito difícil. De certa forma, a síndrome do personagem está se tornando endêmica e precisamos parar e pensar sobre isto. Vale errar. Vale ficar triste. Vale não sorrir o tempo todo. Mas, quando o fizermos, vamos sorrir  de verdade.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Bacurau (2019)

Branca Moura Machado

No início de Bacurau, a personagem Tereza (Bárbara Colen)  pega carona no caminhão pipa que abastece a cidade para comparecer ao enterro de sua avó, Dona Carmelita. Em determinado ponto da estrada   há uma placa que indica Bacurau - 17 KM e a seguinte recomendação: "Se for, vá em paz". Ao acompanharmos o caminhão em sua trajetória até Bacurau, percebemos o quanto a cidade está isolada em meio à paisagem do sertão nordestino. E este fato fará bastante diferença no decorrer da trama a que iremos assistir.
Como a cena do casamento da filha de Don Corleone em "O Poderoso Chefão", o velório é a oportunidade de o diretor Kléber Mendonça Filho nos apresentar os personagens, a relação entre eles, a dinâmica daquela comunidade, os conflitos latentes, o cenário local e outras referências que serão retomadas ao longo do filme. E um dos aspectos que podemos notar neste início é que toda aquela comunidade se conhece, apoiam-se uns nos outros e são bastante unidos,  já que, ao que parece, não há mais ninguém para olhar por eles. Numa cena, bastante simbólica, o candidato à reeleição, Tony Jr., chega à cidade para fazer campanha e ninguém aparece para recebê-lo. É como se a cidade se escamoteasse para se proteger. E esta é outra característica que terá grande utilidade em certo momento da história. 
Coisas estranhas começam a acontecer por ali. Drones sobrevoando a cidade,o caminhão pipa é atacado por tiros, turistas surgem por ali, o sinal de celular é cortado  e Bacurau some do mapa... Não aparece mais no google maps, quando os alunos procuram por ela durante a aula, ou em qualquer referência geográfica. Em um ambiente árido e isolado como aquele, e, a partir dali, inexistente para o mundo, o que restará é matar ou morrer. Não à toa o diretor considera o filme um western brasileiro.
Passamos, então, a acompanhar aquela comunidade que se unirá em defesa de quem são, onde estão e do que não conhecem. Há várias metáforas políticas que podem ser realizadas no filme. Mas o que realmente conta é que a dinâmica cinematográfica funciona bem. Os aspectos clássicos da luta entre o bem e o mal com a catarse construída de modo a nos satisfazer e aceitar o final como o único possível é uma característica de todos os bons filmes do tipo. Como afirma Kléber Mendonça: "De Asterix a Mad Max 2, de O Cavaleiro Solitário, de Clint Eastwood, a Kill Bill e Star Wars, todos usam a mesma estrutura clássica de vilões e heróis, dos que agem versus os que resistem.".
 De certa forma, Bacurau nos remete também à  Dogville, de Lars Von Trier: uma cidade isolada, sem outras comunidades a sua volta, com poucos habitantes e um funcionamento social bem definido. Mas, ao final, a reação do espectador de Dogville se dá contra a própria comunidade local que passamos a conhecer durante o filme. Já, em Bacurau, estamos ao lado da comunidade contra aquilo e aqueles que a atacaram e encurralaram.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Era uma vez em Hollywood

 Uma das coisas de que mais gosto no cinema é que ele pode reescrever a história. Corrigir uma injustiça, juntar um casal que merecia ficar junto, mudar o destino trágico de alguém; e isto traz alento ao espectador. Tarantino reescreveu a história em Bastardos Inglórios e repete a façanha em “Era uma vez em Hollywood...” .
Desta vez, ele tem como pano de fundo os inesquecíveis e chocantes assassinatos cometidos pela Família Manson em Hollywood no ano de 1969. Em um deles, o grupo invadiu uma casa alugada por Roman Polanski em Cielo Drive, 10050, em Bel Air, assassinando sua esposa Sharon Tate (Margot Robbie) — que estava grávida — e mais quatro amigos do casal.
Para recontar esta história, o filme começa 06 meses antes da fatídica data dos assassinatos e nos apresenta dois personagens ficcionais: o ator Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e seu fiel dublê Cliff Booth (Brad Pitt). A cena inicial é uma entrevista com Rick que, não por acaso, está acompanhado por Cliff. Em certo momento, o entrevistador pergunta a Rick o que Cliff faz e o ator responde: “Atores costumam fazer coisas bem perigosas. O Cliff ajuda a carregar este peso”. O repórter pergunta ao dublê: “É isso que você faz?". E ele responde: “Carregar o peso dele? É. É tipo isto”. Os dois se entreolham. A dinâmica dos personagens é exatamente esta. Booth carrega inclusive o peso emocional de Dalton.
Os E.U.A estavam em plena guerra com o Vietnã, a era de ouro de Hollywood chegava ao fim, havia um tédio e uma revolta instalados na cidade; ambiente propício para consumo de drogas, rebeliões e líderes espirituais  se instalarem e multiplicarem.
O filme transmite este clima meio parado, tedioso, em que as pessoas atravessam a cidade em seus veículos à procura de uma diversão que nunca as satisfaz. Tarantino dá este tom ao filme, mas alguns dos seus espectadores não gostaram deste aspecto. Acharam que faltou mais ação, mais violência; marcas do diretor em suas obras anteriores. No meu caso, considero que este ritmo foi o contraponto perfeito para a cena final, que leva a assinatura do diretor e ficará na memória de quem assistir.
Quando Cliff visita Spahn Ranch, local onde residia o grupo de Mason, a atmosfera é bem tensa, apesar das cores e do dia ensolarado. Por sabermos o contexto daquela comunidade, do que eles foram capazes, sentimos a tensão; e Tarantino monta a cena de forma a salientar que aquela comunidade só prega paz e amor, se você não atravessar o caminho dela ou for alvo de sua revolta. E toda essa atmosfera nos prepara para a cena final, quando Cliff vai novamente se encontrar com aqueles personagens...
Muitas características do diretor continuam presentes neste seu nono filme. A violência exagerada e plástica, personagens caricatos, diálogos afiados, closes em pés femininos, trilha sonora marcante, o uso do contra-plongée (plano que filma de cima para baixo), entre outros. Mas, Tarantino usa a história para relembrar a Hollywood em que ele cresceu: meio perdida, desacreditada, com a televisão ameaçando o lugar do cinema e uma guerra injustificada, permeando tudo. E isto ele faz com precisão. Era uma vez uma Hollywood que já foi assim. Agora não é mais. Ela mudou. Como também o diretor.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Dor e Glória

31/7/2019

Em Dor e Glória, Pedro Almodóvar conta a história de Salvador Mallo (Antônio Banderas), diretor de cinema em declínio, que relembra sua vida e carreira desde sua infância em Valência, nos anos 60. Segundo o diretor,  este filme é seu  projeto mais pessoal. A história encerra a trilogia do desejo de Almodóvar, completada por “A lei do desejo”, de 1987, e “Má educação”, de 2004.
A dor do filme é caracterizada pelas constantes enfermidades do protagonista que, desde a infância, aprendeu a conviver com a dor. Ele tem dores no corpo, coluna, e na alma, já que lida também com a depressão. O que o salva é “fazer filmes”.  A glória do título deve-se ao seu sucesso como cineasta que, ao longo da carreira, dirigiu diversos filmes bem sucedidos e premiados. Ocorre que Salvador encontra-se em um bloqueio criativo por estar impossibilitado fisicamente de filmar. E, com isso, tem tempo demais para pensar em suas enfermidades.
O protagonista está perdido, desanimado, sente-se sozinho e começa a conviver com lembranças demais e gente de menos. A história começa quando Salvador é convidado a comparecer a uma sessão especial de seu filme "Sabor", que estreou há mais de 32 anos. A partir deste convite, o diretor procura Alberto (Asier Etxeandia), ator que foi o protagonista do longa e com quem Salvador cortou relações por não concordar com a interpretação do ator. Sobre ela, Mallo reflete: “A atuação de Alberto ganhou muito com o tempo”.
  Esta retomada de relação com Alberto é, de certa forma, um recomeço. O ator descobre "Vício", um conto escrito pelo diretor e resolve encená-lo no teatro. Salvador não quer se envolver com a produção  já que considera o conto “uma história de erros que se viu contada”. Mesmo assim, terá que lidar com o que esta peça resgata do seu passado. É um ciclo discursivo interessante ver Alberto ler o conto, interpretá-lo em um monólogo, e assistirmos a tudo no cinema. "Dor e Glória"  é entremeado de flashbacks não lineares e cenas fictícias que constituem um complexo trabalho narrativo. 
Almodóvar mantém o colorido e as estampas, características de seus filmes. As cores primárias estão lá, presentes e pensadas. No entanto, a obra é introspectiva; o que não é comum em outras obras do diretor.  O filme é melancólico ao mostrar que a glória não traz necessariamente o alívio. A dor não fica melhor, pode ser mascarada quando se faz algo com paixão. Este é o caminho da cura de Salvador no filme. E, talvez, o caminho de Almodóvar. Um caminho que, para nossa sorte, ele compartilha com o espectador.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Turma da Mônica: Laços



A dica deste mês aproveita o período de férias para comentar sobre "Turma da Mônica: Laços", um filme infantil que, provavelmente, vai agradar tanto ou mais os pais que os filhos. Pelo menos, pais, como eu, que cresceram lendo os quadrinhos de Maurício de Sousa. Conhecemos aqueles personagens, suas particularidades, suas interações. Foram nossos amigos,  são amigos de nossos filhos; o que, de certa foram, cria laços entre nós.

Aliás, não é à toa que o filme tem "laços" no nome. Os laços estão lá entre eles, mas também estão entre a tela e o espectador. Muitas vezes, a emoção vem exatamente deste envolvimento que já existia antes do filme.
No meu caso, emocionei-me logo ao escutar a trilha da Turma no início do filme. Toca a trilha, surge a rua, a casa dos personagens, meu imaginário de infância ali na tela. Em muitos outros momentos, esta emoção surgiu novamente. A trama é simples, mas sensibiliza o espectador de muitas formas. Ao longo da história, sentimos medo, achamos graça, ficamos encantados, aflitos, felizes, saudosos e, principalmente, envolvidos. Como não se identificar com a tristeza palpável do Cebolinha (Kevin Vechiatto), quando percebe que o Floquinho sumiu? Ou com o choro sentido da Mônica (Giulia Benite), quando ela deveria estar jogando o Sansão no Cebolinha? Ou quando sofremos junto com os pais em busca dos filhos perdidos?
Alguns comentários dos personagens trazem as nuances dos personagens para tela.  Como, por exemplo, quando o  Cascão (Gabriel Moreira) diz ao mendigo que mora no Parque das Andorinhas:  "Sua casa é um resort 06 estrelas, não tem chuveiro, banheiro e, o melhor de tudo, não tem piscina!". Ou, quando a Magali (Laura Rauseo), ao ouvir a história do homem do saco, pergunta se dentro do saco tinha comida. 
A aventura da turma é principalmente uma jornada de amadurecimento para o Cebolinha que aprende que um plano só é infalível, quando todo mundo pensa junto. Como afirma o Louco (Rodrigo Santoro) ao personagem: "Só tem amigo quem percebe que não pode fazer tudo sozinho.". 
Em um filme realizado com muito carinho, os laços que Mônica amarra na árvore para que encontrem o caminho de volta na floresta, ou que o Louco entrega ao Cebolinha em certo momento da história, simbolizam o valor do outro na sua própria existência. De como este outro faz a diferença. É um pouco como a nossa sensação ao ver o filme: uma sensação de se sentir e fazer parte. Em certo momento do filme, meu filho disse: "Essa galera é muito mito, né, mãe?". Fiquei muito feliz por dividir aquele momento com ele e  ele, comigo. Essa sessão de cinema ficará no nosso imaginário e tornou-se mais uma laço amarrado em uma das árvores de nossa trilha. 

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Rocketman (2019)

Uma cinebiografia costuma ser interessante de se ver. A pessoa ali retratada não teve sua história contada à toa. Descobrimos nuances  sobre ela que, ou nos fazem admirá-la mais, ou, surpreendem-nos de forma negativa, mas é difícil ficarmos indiferentes. Foi isto que aconteceu comigo ao assistir Rocketman. Descobri um Elton John muito maior e mais complexo do que eu conhecia. 
Um dos fatores que ajudaram a aumentar minha admiração foi o fato de Rocketman  concentrar as melhores músicas do cantor em duas horas. Assim, percebemos seu talento de forma bem mais intensa. São músicas pessoais, transparentes, intensas, apresentadas no contexto certo; o que nos faz passar o filme emocionados. Como afirma o crítico do UOL, Roberto Sadovski: “gênios de verdade cantam o que sentem e mostram quem são.”. No filme, também passamos a conhecer melhor o compositor Bernie Taupin (Jamie Bell) que colabora com Elton (Taron Egerton) desde 1967 e escreveu as letras da maioria das músicas do cantor. Bernie foi uma espécie de porto seguro na vida de Elton, já que o cantor veio de uma família fracionada  e, muitas vezes, ausente. O pai só chamava o filho de "garoto" e, numa cena emblemática, ele estala os dedos e Elton tem que sair de onde está para o pai sentar.
O modo de contar a vida do cantor foi solucionado de forma eficiente. Elton está numa reunião dos Alcoólicos Anônimos e resume seu problema: “Sou alcoólatra, viciado em cocaína, em sexo,  bulímico, comprador compulsivo...” . A partir daí, ele reconta sua história. Isto dá ao filme a licença poética necessária para incluir cenas musicais em lugares que não existiriam e chegar às conclusões as que o cantor chegou, pois o tempo todo estamos acompanhando a narrativa dele. Como produtor executivo do filme, percebemos que o cantor aceitou grande parte do que foi e fez e não teve medo de contar. 
O cantor fez sucesso muito cedo, quando não havia definido nem sua sexualidade, muito menos quem era de verdade. Foi influenciado pelos discos de sua família, pelas bandas que acompanhou e por pessoas, tanto do bem quanto do mal, que encontrou pelo caminho. Até se conhecer (e se aceitar), foi muito sozinho. Tudo isto, em meio a uma carreira meteórica, que não parou mais. Realmente, sua ascensão foi como a de um foguete. Mas não sua aceitação. No meio do caminho, ele foi ao fundo do poço. Não à toa o filme mostra a primeira apresentação do cantor nos E.U.A, aos 23 anos, no Troubadour, clube tradicional em Los Angeles. Ao som de "Crocodile Rock", o cantor e a plateia flutuam no ar numa demonstração de quanto o momento foi especial. Algum tempo depois, com o sucesso já concretizado, há outra cena, na casa dele, com Elton embriagado em que ele se joga no fundo da piscina ao som de Rocketman. São duas cenas opostas e muito simbólicas do longo caminho de Elton até se encontrar. 
Aos 28 anos, o cantor  já era multimilionário, mas sua autoestima era baixa, ele era inseguro, tímido e teve que criar um personagem para se apresentar nos palcos. Em certo momento, ele afirma: "Até onde eu me lembro, sempre odiei a mim mesmo.". Há uma cena em que ele surge diante de um espelho, ensaiando um sorriso que, na verdade, não tinha. Mas Elton aprendeu a se amar e  aprendeu a perdoar. Até chegar onde está, descobrimos que, ironicamente, o  Rocketman precisou de tempo. Conforme a letra da música que dá nome ao filme: "Eu acho que vai ser um longo, longo tempo até que o pouso me restaure a consciência novamente para descobrir  que eu não sou o homem que eles acham que sou em casa.".

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Coisa mais linda (Série original Netflix)

Coisa mais linda é uma série original do Netflix  estrelada pelas atrizes Maria Casadevall, como Malu; Fernanda Vasconcellos, como Lígia; Mel Lisboa, como Thereza e Pathy Dejesus,  como Adélia. Ambientada no final dos anos 50 no Rio de janerio, a série conta a história da paulistana Malu que se muda para o Rio de Janeiro para se encontrar com  o marido  e realizarem o sonho de abrir um restaurante. Mas, ele rouba todo o seu dinheiro e some.  Malu, decide, então, contra todos os costumes e tendências da época,  abrir um clube noturno de bossa nova; tendo como sócia, Adélia, uma negra, que, até então, trabalhava como empregada doméstica no prédio que Malu morava.
O primeiro aspecto que chama a atenção na série é que se trata de uma produção com protagonistas femininas. Os personagens masculinos contribuem para a trajetória delas, para provocar mudanças, para reagirem, mas a série não é sobre eles, é sobre elas. Outra personagem importante é a música, que permeia todos os episódios e marca viradas importantes na história.
De certa forma, a série contextualiza a situação de Joan,  personagem de Glenn Close no filme "A Esposa", comentado neste blog em março. Ela nos ajuda a entender a decisão da personagem no filme. Mas as mulheres de "Coisa mais linda" não decidem como ela. Elas reagem. E, com isso, sofrem as consequências de suas decisões.  E é esta trajetória que acompanhamos ao longo dos sete episódios da primeira temporada.
Malu, Lígia, Thereza e Adélia são revolucionárias em sua própria história. De "abandonada pelo marido" e uma pária da sociedade na época, Malu resolve ser empreendedora em um negócio totalmente masculino; de esposa perfeita de um marido abusivo, Lígia resolve voltar a cantar. Thereza é a única jornalista mulher de uma revista voltada ao público feminino. Adélia, de mãe solteira, negra e analfabeta, torna-se sócia de Malu. Claro que isso vai causar raiva, revolta e preconceito diante do status quo predominante na época. Mas foram mulheres assim que abriram o caminho para que as coisas mudassem para todas as outras depois. 
O que há de mais forte na série é a amizade entre as protagonistas. E como esta amizade as torna mais corajosas. Às vezes, esquecemos o tanto que conquistamos. Esquecemo-nos porque estamos acumulando a conquista com o papel que já tínhamos. E  os papéis não deveriam ser acumulados, mas compartilhados. Ainda há um longo caminho a  ser percorrido,  mas  a série nos mostra que  já evoluímos muito. E o caminho conquistado é a coisa mais linda. 

sexta-feira, 29 de março de 2019

A Esposa(2019)


Em seu discurso de agradecimento pelo Globo de Ouro de melhor atriz em 2019, Glenn Close comentou: “Lembro-me da minha mãe que foi submissa ao meu pai por toda sua vida. Aos 80 anos, ela me disse: Sinto que não conquistei nada.”. O drama “A esposa”, pelo qual a atriz teve sua atuação premiada, retrata justamente este conflito das mulheres nas décadas de 50/60 que já almejavam sucesso profissional, uma carreira fora do âmbito doméstico, mas ainda tinham pouquíssimas possibilidades de conquistá-los.
O filme conta a história de Joan (Glenn Close) que se casa com seu professor de literatura, o escritor Joe Castleman (Jonathan Pryce). Aquela aluna brilhante e promissora torna-se o apoio do marido durante os 40 anos de casamento. Não por acaso, ele faz questão de que ela escute na extensão quando ele recebe a notícia de que foi premiado com o Nobel de literatura em 1992. 
Sempre discreta, excessivamente prestativa e elegante, Joan carrega toda sua história no olhar. E percebe-se que não foi uma trajetória fácil ou simples. Os conflitos, os gritos estão ali, guardados naquele olhar. E, por isso, o diretor Björn Runge  coloca a câmera nela, em seu rosto. Ele nos mostra  a expressão dela ou  sua reação diante de algo que foi dito ao marido ou por ele.  
Joe faz questão de ter a esposa sempre a seu lado e não deixa de agradecê-la efusivamente em todo o discurso que realiza. "Sem esta mulher, não sou nada", ele afirma em determinado momento. Lindo, não? Ao longo do filme, perceberemos que há muito mais naquela frase que aquela camada de gentileza e gratidão...
O reconhecimento do Nobel reacende assuntos e dilemas sufocados ao longo de todo o casamento. E também a relação do pai com o filho, bastante conflituosa, revelar-se-á tremendamente hipócrita pelo que descobrimos no filme. David (Max Irons) endeusa o pai por ser um escritor tão brilhante e esta admiração só aumenta a frustração que o pai carrega.  Assim, Joe desconta no filho o fato de reforçar o  peso que já o atormenta.
À medida que a trama se desenvolve, percebemos que o drama daquela esposa “exemplar” é maior do que desistir de desenvolver seus talentos e interesses por não ter chances de prosperar em uma sociedade machista e opressora. Ela tornou-se a dona da voz de quem nunca se conheceu o  rosto; pois, para ser ouvida, precisou de outro rosto. A Esposa é um drama que nos dá aflição por ser velado, aceito e, principalmente, por durar uma vida inteira. 

sexta-feira, 1 de março de 2019

Green Book: O Guia

Peter Farrelly, diretor de  "Green Book",  vencedor do Oscar 2019 de melhor filme, parece ter feito a seguinte pergunta ao realizá-lo: Como falar de maneira leve sobre um drama verdadeiro? E, com isso, aproxima seu tema de um público que, talvez, não atingisse se  o  assunto fosse tratado de  maneira muito séria. O drama já está ali. É palpável. É rotina. Não é necessário enfatizá-lo.
O filme é uma comédia dramática sobre  uma turnê na região de Deep South, nos Estados Unidos, feita pelo pianista de jazz clássico Don Shirley (Mahershala Ali) e Tony Vallelonga (Viggo Mortensen), um segurança ítalo-americano que trabalhou para Shirley como motorista e segurança durante essa turnê de 08 semanas.
Ao partir para a viagem, Tony recebe das mãos do empresário de Don o guia que dá nome ao filme: The Negro Motorist Green Book, informalmente chamado de Green Book, que se tratava de um guia turístico para viajantes afro-americanos, escrito por Victor Hugo Green com o intuito de ajudá-los a encontrar dormitórios e restaurantes favoráveis no sul dos Estados Unidos nos anos 60. O guia realmente existiu e a história do filme é baseada em fatos reais. O filho de Tony, Nick Vallelonga, inclusive, colaborou com o roteiro do filme que também ganhou o Oscar deste ano de roteiro adaptado.
A simples presença deste guia já nos faz perceber que a viagem daquele aclamado pianista negro para o sul do país vai ter percalços que, talvez, só um homem como Tony conseguirá resolver. Tony é apresentado como um segurança de clubes noturnos de Nova York, uma pessoa que resolve problemas. Ele é simples, preconceituoso, bronco, não por acaso, criado no Bronx e, pelo modo de vida, e, pelo fato de descender de emigrantes, a seu modo, identifica-se com o drama de Don, mesmo sem saber. E o mais incoerente é que, apesar de entender, ele mesmo contribui para o drama do outro. Aos poucos, assistimos à transformação de Tony e também nos identificamos com suas pequenas (e grandes) revoltas ao longo desta viagem.
Por outro lado,  Don, muitas vezes, tem uma vida mais "branca" que a de Tony na Nova York dos anos 60: sempre impecável, com um tom de voz inabalável, não conhece a música de Little Richard ou Aretha Franklin, mora em um apartamento no Carnegie Hall, é metódico, organizado e tem doutorado em música clássica. Conforme Tony o descreve para a esposa: "Ele não toca como um negro. Ele toca como Liberace. Só que melhor. Acho que ele é um gênio. Quando eu olho pelo retrovisor, ele está sempre refletindo…". Até neste elogio, percebemos a incoerência que permeia todo o filme... Tony, apesar de adorar a música negra americana,  ao elogiar Shirley, comenta que "ele não toca como um negro". E, é por não tocar como eles, que Shirley é convidado para esta turnê pelo sul preconceituoso dos Estados Unidos. Mesmo assim, o modo como ele toca não muda o modo como ele é tratado.  E a incoerência deste tratamento, aparece de modo, às vezes,  sutil e outras, escancarado em cada cidade que visitam.
Uma amizade inesperada surge na admiração mútua que os dois personagens acabam sentindo um pelo outro pelos motivos mais diversos possíveis. Green Book torna-se, assim, um filme divertido com um pano de fundo muito importante e que não pode ser esquecido.