terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Dois Papas (2019)

 


Dois Papas é uma produção de 2019, dirigida por Fernando Meirelles, com roteiro de Anthony McCarten baseado em sua peça teatral The Pope. Ele é estrelado por Anthony Hopkins, que representa o Papa Bento XVI; e Jonathan Pryce, que faz o Papa Francisco. Disponível no Netflix, o filme trata, por meio da ficção, da misteriosa renúncia do papa Bento XVI e  da consequente ascensão do cardeal argentino, Jorge Mario Bergoglio, ao trono de São Pedro.

O filme concorreu aos Óscares de melhor ator, ator coadjuvante e roteiro adaptado. E merecidamente. O foco é nos dois personagens e os atores são carismáticos e interessantes. Assistimos a um combate ideológico entre eles que acontece em um encontro fictício entre o então Cardeal argentino e Bento XVI  na residência de verão do Castelo Gandolfo em 2012. Neste encontro, o Cardeal requer sua aposentadoria do cargo e Bento XVI não só não a aceita, como confessa ao colega que irá renunciar. Nestas revelações, características diversas e visões de mundo bastante diferentes afloram. Cada um defende seu ponto de vista com inteligência e respeito à opinão do outro, além de  um propósito comum:  Nenhum deles quer que o outro desista. 

Bento XVI é conservador, defende a tradição. Ele passa por um período difícil como Papa já que seu assessor pessoal acaba de revelar documentos que comprometem a igreja católica e todos os dogmas tão defendidos por ele. A crise dos abusos sexuais estava no auge.  Já Francisco, quer mudanças. Acha que a Religião precisa delas.  Francisco em um de seus discursos fala em assumir responsabilidades "Quando ninguém é culpado, todos são culpados." Talvez, referindo-se à postura apaziguadora de Bento XVI durante as revelações. Ele também  alerta para o perigo da globalização da indiferença. Por meio destes diálogos, o filme encontra formas de colocar em cena as questões  que a Igreja Católica e, por que não, o mundo enfrentam no início do século XXI.  

A história começa em 2005 com a morte de João  Paulo II e, em seguida, com o conclave ocorrido na Capela Sistina que elegeu Joseph Aloisius Ratzinger como o Papa Bento XVI. Ali, em uma cena casual, já percebemos a diferença entre os personagens. Bergoglio assobia Dancing Queen. Ratzinger desconhece a música. Ela continua como trilha sonora do início daquela votação. E o contraste entre ela e aquela cerimônia tradicional e secreta aumenta o interesse da cena. Aliás,  não é só neste momento que a trilha contrasta com a temática. Como também os dois Papas são constrastantes entre si. 

Fernando Meirelles afirmou que os diálogos, ainda que se tratem de ficção, estão baseados na realidade: "Todos os diálogos bebem de discursos, entrevistas e escritos (dos dois papas). O que dizem no filme  já disseram em algum momento de suas vidas". São visões contrastantes, posturas diferentes, o conservador e o novo, mas o que se percebe naquela dinâmica é respeito, empatia e até admiração. É assim que devia ser qualquer embate ideológico.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O Gambito da Rainha (2020)


 “O Gambito da Rainha” tornou-se a minissérie roteirizada mais assistida na história da Netflix. Segundo a empresa, a produção foi vista por 62 milhões de usuários, em seus 28 primeiros dias desde a estreia. A busca por "como jogar xadrez" duplicou no Google neste período e o livro de Walter Tevis, que inspirou sua adaptação, retornou à lista de best sellers do New York Times. 

A história inicia-se em um orfanato no estado de Kentucky (EUA), nos anos 1950, no qual Elizabeth Harmon (Anya Taylor-Joy) descobre um talento impressionante para o xadrez ao jogar no porão com Sr. Shaibel (Bill Camp), o zelador, ao mesmo tempo, em que passa a fazer uso de tranquilizantes; que eram prescritos às crianças naquela época.  Assim, acompanhamos o crescimento da protagonista, em meio à descoberta de sua genialidade no jogo e sua dependência crescente em tranquilizantes. 

Apesar de Beth ser uma personagem dura, que não se vitimiza, nós passamos a gostar e torcer por ela. E esta torcida vai para os dois jogos que ela tem de enfrentar: o da vida, que, até então, não trouxe muita sorte para a garota; e o da sua trajetória de sucesso no xadrez, no qual o primeiro pode dar um xeque mate. A personagem tem algo de "o médico e o monstro", com sagas paralelas e discrepantes, às quais assistimos com emoção e apreensão.

A escolha do nome "Gambito da Rainha" deve-se ao movimento no xadrez de sacrificar temporariamente um peão para obter o controle do centro do tabuleiro. O jogador sacrifica algo logo no início do jogo para chegar à vitória depois. Podemos dizer que Beth usa tal estratégia não apenas no jogo, mas também em sua trajetória pessoal.

A série retrata o universo do xadrez, jogadores e competições como um mundo à parte, ao qual somos apresentados. Em uma cena memorável, Beth, é colocada à prova em uma simultânea no clube de xadrez do colégio. Com 09 anos, ela joga com 12 meninos ao mesmo tempo e ganha. Sinceramente, eu nem sabia que as simultâneas existiam.

Acompanhamos, assim, uma órfã, que, jovem e mulher, passa a competir e brilhar em um meio altamente masculino. Sua mãe adotiva, Alma (Mariele Heller), recém divorciada, a acompanha. Nos anos 50, as  duas são outsiders. Elas apoiam-se uma na outra e encontram ali a forma de ficar mais forte no "jogo". Não é só com Alma que Beth pode contar, mas também com Jolene (Moses Ingram), sua amiga no orfanato e muitos outros que conheceu por meio do jogo. A série trata de vários subtemas sem dramatizá-los ou romantizá-los. Exatamente como o xadrez deve ser jogado.

Segundo o "El Pais", um dos melhores jogadores do mundo, Garry Kasparov, afirma que nunca tinha visto uma série que respeitasse tanto as estratégias e os tempos do xadrez "é a mais realista das pouquíssimas obras já feitas sobre um esporte que, definitivamente, é pouco visual". Só por isto, ela já merecia aparecer como dica por aqui. Mas ela é muito mais, ela retrata personagens complexos, nada maniqueístas, tentando ganhar este jogo que é a vida. E este é um jogo que todos nós conhecemos.