quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Argentina, 1985


Argentina, 1985 é um filme de julgamento baseado em uma história real. Não só isto. É sobre o primeiro julgamento civil de réus militares no país. Dirigido por Santiago Mitre e estrelado por Ricardo Darín e Juan Pedro Lanzani, ele foi pré-selecionado para disputar uma das cinco vagas de concorrência ao Oscar 2023 de Melhor Filme Internacional. Merecidamente. O filme nos envolve e traz sensação de pertencimento. Parece que fazemos parte da equipe da promotoria.  

Disponível na Amazon Prime Video, a trama tem início em dezembro de 1983, com o fim da ditadura na Argentina. Acredita-se que mais de 30 mil pessoas foram mortas durante o período no país. Com 7 meses do novo governo, o julgamento militar dos envolvidos com os crimes não andava. A solução foi transferir o processo para a esfera civil. Os responsáveis pela acusação seriam Julio César Strassera (Darín) e seu adjunto, Moreno Ocampo (Lanzani).     

No início, Julio se mostrou apreensivo com esta possibilidade, já que acreditava que o julgamento fosse mais uma utopia. Quando ele recebe a notícia de que será o promotor do caso, rebate: "Não serei o idiota que irá defender algo que nem o governo acredita." E seu superior resume: "Você é o promotor. Não pode recusar". Ao comentar com Ruso (Norman Briski) sobre a situação, enfatiza: "A história não foi feita por caras como eu" e Ruso rebate "No entanto, você será o promotor do julgamento mais importante da história da Argentina". 

Em algumas cenas, vemos que até Raúl Alfonsín, presidente do país à época, dava depoimentos públicos em que culpava as vítimas pelo que sofreram no período ditatorial; o que reforçava o desânimo da promotoria. Strassera teve também dificuldades para montar sua equipe; que precisaria reunir provas em tempo exíguo (4 meses até o início do julgamento). 90% ou mais funcionários públicos não queriam se envolver com aquele processo. Muitos, inclusive, não colaboraram por não acreditar que toda aquela crueldade realmente tivesse acontecido.  

Ocampo traz a solução: "Se os experientes não querem, vamos trazer os inexperientes". A seleção e montagem da equipe renderam ótimas cenas, bem como a busca por provas e testemunhas. Em certo momento, o promotor pergunta a um candidato: "Em quem você votou na última eleição?" e ele responde "Eu não votei. Eu tinha 17 anos". No dia da entrega dos documentos comprobatórios, o defensor público questiona Strassera: "Onde arrumou esta equipe? Nos escoteiros?" E o promotor alerta: "Sugiro que preste mais atenção à eloquência das minhas provas que à juventude da minha equipe". 

A dinâmica entre Strassera e Ocampo é uma atração à parte. O mais velho é sistemático, mal-humorado, discreto. Sua declaração de encerramento é comedida. Não há grandes gestos no tribunal, nem voz levantada.  Como descreve o Hollywood Reporter "de sua cadeira, o funcionário do governo afirma o tormento infligido a milhares de seus concidadãos, e Argentina, 1985 nos lembra que a verdade irrestrita é um remédio forte". Ocampo é mais flexível, sorridente, acha importante se posicionar publicamente. E, para isto, comparece a entrevistas e programas de opinião. Os dois se complementam e rendem cenas interessantes. Quando o promotor questiona seu jovem e inexperiente adjunto sobre se ele ainda recebe ajuda da sua mãe, Moreno responde: "Ela não aprova este julgamento. Acha que os militares fizeram o certo. Vai ver foi por isto que eu aceitei." 

Os excessos cometidos devem ser punidos. E o excesso de um lado não justifica o excesso do outro. É aquela história "o errado é errado, mesmo que todo mundo o faça". Este julgamento trouxe esta comprovação à sociedade argentina. Ele foi necessário e um filme que conta esta história também é.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Psicose (1960)

 Tive a oportunidade de rever Psicose recentemente no Telecine Classic. Sou fã da obra do diretor Alfred Hitchcock e, sempre que tenho a oportunidade, revejo suas produções. Neste filme, a secretária Marion Crane (Janet Leigh) rouba 40 mil dólares de seu patrão. Durante a fuga, ela erra o caminho e chega em um velho motel (o "famoso" Bates), onde é amavelmente atendida pelo dono, Norman Bates (Anthony Perkins).

A partir daí, acontece o improvável. Marion, até então, a protagonista da trama, é assassinada com cerca de 30 minutos de filme. O que atraiu Hitchcock a filmar esta história foi justamente o aspecto repentino do assassinato no banheiro. Achamos que estávamos seguindo uma trama com determinada personagem e, ali, muda-se a trama e o protagonista. O diretor propositadamente realizou o início mais longo, com foco no roubo e na fuga de Marion, para que o crime fosse uma surpresa total. Hitchcock, inclusive, insistiu para que não se deixasse o público entrar depois de o filme ter começado, pois os retardatários iriam esperar o momento de ver Janet Leigh, a estrela que interpretava Marion e ela já teria deixado a trama.

Psicose custou 800 mil dólares e faturou 60 milhões de dólares nas bilheterias do mundo inteiro. O filme, a princípio, recebeu críticas mistas, mas, em razão da excelente bilheteria, obteve uma reconsideração que o levou à aclamação da crítica e quatro nomeações ao Óscar, incluindo melhor atriz coadjuvante para Leigh e melhor diretor para Hitchcock.

Filmado em preto e branco, Psicose mantém uma atmosfera de tensão constante, potencializada pela trilha sonora e o aspecto decadente do Bates motel. Sobre o cenário, o diretor esclareceu em entrevista ao também diretor francês, François Truffaut: "Não iniciei meu trabalho tencionando reproduzir a atmosfera de um velho filme de terror da Universal, queria apenas ser autêntico. Ora, não há a menor dúvida, a casa é uma reprodução fiel e o motel também." E Truffaut ainda enfatizou que a composição do ambiente, com a casa vertical e o motel totalmente horizontal é agradável de se ver.

Outro aspecto que o filme explora é o prazer de observar da audiência. Ao acompanhar atentamente o que ocorre na tela, o público muda de interesse e sentimento durante a trama. Começamos acompanhando Marion e torcendo para que ela não seja descoberta; depois, passamos a simpatizar com o solitário e dedicado Norman. Apesar de ele esconder meticulosamente todos os vestígios do assassinato, torcemos para que ele não seja incomodado. Mais para a frente, já mudamos de ideia e queremos que ele seja pego para finalmente esclarecermos o que aconteceu naquele crime.

Sobre a produção, o diretor afirmou: "Creio que para nós é uma grande satisfação usar a arte cinematográfica para criar uma emoção de massa. E, com Psicose, realizamos isso. Não foi uma mensagem que intrigou o público. Não foi uma grande interpretação que transtornou o público. Não era um romance muito apreciado que cativou o público. O que emocionou o público foi o filme puro".  Diretores como ele realmente transformaram o cinema na sétima arte, com  uso de recursos e artifícios próprios só possíveis de serem utilizados  na tela cinematográfica. Eu, como cinéfila,  agradeço. 


segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Noites de Paris


 O filme Noites de Paris tem início em 1981, quando Élisabeth (Charlotte Gainsbourg) se encontra em crise após ser abandonada pelo marido. Ela precisa encontrar um emprego para cuidar dos dois filhos adolescentes e consegue o cargo de produtora num programa de rádio noturno, "Os Passageiros da Noite", ao qual ela escuta rotineiramente, já que enfrenta problemas para dormir. Enquanto sua vida sofre mudanças, a França também passa por elas. François Mitterrand acaba de vencer as eleições e há um clima de otimismo no ar; contrastante com a situação da personagem, que teme um futuro incerto tanto psicológica quanto financeiramente.

De acordo com matéria do Jornal do Brasil, o diretor Mikhaël Hers comentou que tinha vontade de produzir um longa sobre os anos de 1980, o período de sua infância. “Dizem que você é um produto tanto de sua infância, como de seu país, e eu queria mergulhar naquele período da minha vida, revisitar imagens e sons. Aquelas sensações e cores que me compõem”. 

Para quem conhece os anos 80, só de ver a primeira personagem em cena, Talulah (Noée Abita), já sabemos que estamos neles. O cabelo, o figurino, a ambientação; até o mapa do metrô de Paris, no qual você acende luzes alternadas para entender a rota que irá seguir; confirmam em que década estamos. Aliás, a maneira com que Talulah observa aquelas informações reflete também sua trajetória no filme. Ela está de costas para nós, observando o mapa e acende e apaga as várias rotas como opções de um destino que ela parece escolher na hora. A personagem é uma espécie de andarilha dentro da cidade e é na rádio que conhecerá a protagonista. Talulah vai ao programa para fazer um relato. Élisabeth se identifica com ela e a traz para a sua casa; o que provoca uma nova transformação na vida de todos os familiares.

No filme, nossa sensação é de intimidade. Estamos dentro do apartamento daquela família o tempo todo. Sabemos quem são, sua rotina, seus dramas.  De forma oposta, acompanhamos Talulah, que tem em sua mochila  o mais próximo de um lar .

Bruno Carmelo, crítico da coluna papo de cinema, cometa que o drama efetua um "belo trabalho de desconstrução do imaginário comum associado à capital francesa". Sem os famosos pontos turísticos e a fotografia que objetiva valorizá-los ainda mais, convivemos na Paris do dia a dia, do cidadão comum, que tem, como a gente, de viver sua rotina e enfrentar seus dramas. Bruno comenta "a direção de arte aposta nos cenários retrofuturistas de uma periferia verticalizada, cujo horizonte é tomado por arranha-céus semelhantes entre si". 

Quando Élisabeth se desfaz do apartamento, é o fim de um ciclo. E, com ele, o fim da nossa participação. A história agora é outra. E, desta, não vamos participar. O que percebemos no filme é que ciclos terminam; outros se abrem. São encontros e despedidas. E é preciso se mover. Percebemos esta evolução em Élisabeth. O filme retrata um drama cotidiano com simplicidade e aproximação. Concluo com um trecho de Encontros e Despedidas de Milton Silva Campos do Nascimento  e Fernando Brant; letra que o filme me resgatou:  "Todos os dias é um vai e vem. Tem gente que chega pra ficar. Tem gente que vai pra nunca mais. Tem gente a sorrir e a chorar. E assim chegar e partir".


segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Marte Um

 

Branca Moura Machado

Para esta edição especial do Sexta em Conexão sobre Minas Gerais, escolhi um filme totalmente produzido no estado e com atores mineiros. Não só por isto, já que Marte Um foi o escolhido pelo país a tentar uma vaga no Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano. Mas também não só por isto. Marte Um é emocionante. Traz uma emoção bem doce, que toca fundo; o que já o torna um longa que merece ser comentado. Não à toa, além de ganhar os prêmios de melhor filme por júri popular, roteiro e trilha sonora no Festival de Cinema de Gramado; Marte Um ganhou também o prêmio especial do júri por "trazer de volta o afeto." 

   Escrito e dirigido pelo mineiro Gabriel Martins, de 34 anos, o filme conta a história de uma família negra da periferia de Contagem em sua dinâmica diária.  O caçula é Deivid (Cícero Lucas), que sonha em se tornar astrofísico e participar de uma missão (a Marte Um) que colonizará o planeta Marte em 2030. O pai, Wellington (Carlos Francisco), é porteiro de um prédio de luxo e é membro dos Alcoólicos Anônimos. A mãe, Tércia (Rejane Faria), acredita estar sofrendo de uma maldição, depois de sofrer uma pegadinha de um programa de TV. A irmã mais velha é Eunice (Camilla Damião), que se apaixona e quer mudar de casa para viver com a namorada. 

A história mostra dramas diários e conflitos interiores que, por serem tão simples e nos trazerem tanta identificação, talvez, nos emocionem mais. Queremos que Deivinho se abra com Wellington, mas entendemos como o garoto se sente ao não querer frustrar um sonho tão assumido pelo pai, que parou de beber e se apegou fortemente ao projeto de tornar o filho um grande jogador de futebol. Entendemos a relutância de Eunice entre seguir sua vida e deixar aquela família cheia de afeto, mas que precisa muito dela como uma espécie de mediadora. E sabemos que aquela aflição de Tércia não vem de uma loucura momentânea, mas de anos carregando preocupações domésticas, financeiras e a consciência de embates que percebe que um dia a família terá que lidar. São manifestações psicossomáticas representadas por aquela síndrome de pânico que a personagem enfrenta. Assistimos a dramas solitários que a família não divide totalmente entre si, mas que nós, espectadores, passamos a conhecer e compreender. 

E, por ficarmos assim, tão íntimos, queremos que tudo se resolva da melhor forma possível. Mas, o filme não nos dá esta solução milagrosa. Aquela família tem que viver um dia de cada vez. Por 24 horas, como aconselhado na reunião dos Alcoólicos Anônimos. A esperança é de que, por dividirem tanto afeto, irão ficar bem. Afinal, eles têm um ao outro, como tão bem retratado na cena final, em que todos observam o céu com Deivinho. 

Talvez, o único final feliz para o qual eu não torça tanto é que Deivinho consiga ir para Marte em 2030... Fica por aqui, Deivinho. Precisamos de você.


quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Um Homem Bom

         Para esta coluna do Assista-me no Sexta em Conexão sobre ética, pedi à Mônica, nossa representante regional do tema e idealizadora desta edição, a indicação de um filme para eu comentar e ela me deu a dica de “Um Homem Bom”. Lançado em 2008, disponível na Amazon Prime, o filme é uma coprodução entre Inglaterra e Alemanha e o primeiro trabalho internacional do diretor brasileiro Vicente Amorim ("Caminho das Nuvens").  

O roteiro é a adaptação da peça teatral “Good” de 1981 do dramaturgo escocês Cecil Philip Taylor, que se dedicou a retratar o homem comum em diversas situações em sua obra. E, neste filme, assistimos a um homem comum na Alemanha pré-2ª Guerra: o professor de literatura alemão, John Halder (Viggo Mortensen), casado com Helen (Anastasia Hille), pianista; com quem divide as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos numa vida simples e atarefada. Mora com eles também a mãe de John (Gemma Jones), que sofre de demência senil.


        O professor, em 1933, escreveu um romance que aborda a eutanásia. O fato de Halder ter tratado do tema chama a atenção dos oficiais nazistas em 1938; quando já procuravam justificativas intelectuais para o que eles chamavam de espírito renovação do partido  - que nada mais era que o extermínio em massa das vítimas preferenciais do regime - judeus, esquerdistas, homossexuais e opositores em geral. Sobre o tema, o ministro da censura explica a um relutante John: “A ideia é acabar com o sofrimento daqueles pobres desafortunados que nasceram com problemas incuráveis”. E, em outro, um dos seus colegas da SS o questiona: "Quando vão começar a procriar? Vocês são um casal nórdico perfeito!"

O que queriam de John era simples: um tratado literário sobre a eutanásia. No fundo,  o objetivo era trazer humanidade ao assunto e usaram o professor como instrumento. Sem perceber todas as nuances daquela encomenda, Halder se vê reconhecido como nunca foi e tem grande ascensão na carreira.

Em determinado momento, sua mãe comenta: “Você sempre foi um homem bom, John. Um menino tão bom”. E ele realmente é ou procura ser. Mas ser bom é fazer o que deve ser feito? O que todos esperam? Este é o dilema ético do professor, que não gostava de ser chamado de capitão. Naquele momento, o certo e o errado não estavam claramente delineados para ele. E seu contraponto, Maurice (Jason Isaacs), o grande amigo judeu que tenta mostrar o que está para acontecer, chega a comentar que não dava mais para aguentar toda aquela desumanidade. John se vê, então, entre a humanidade argumentada pelo partido - que ele representava- e esta desumanidade que o amigo desmascarava. 

A cena final, delicada, mas, ao mesmo tempo, dura, faz John enxergar o errado claramente. E, ali, ele percebe que ser um bom moço não é uma questão simples, não é seguir as regras. Há um compromisso maior. Tal como a Mônica escreveu em sua reflexão sobre "herança e escolha", é preciso “receber, interpretar, transformar nosso legado: com a razão, com os afetos, com o corpo, com os sonhos, com a imaginação. E construir um novo legado que amplie mais nossas potencialidades, que construa a cada dia um mundo novo. É esse o nosso compromisso com o presente e com o futuro.”

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Belfast

 

A história de Belfast começa em 15 de agosto de 1969, quando teve início um surto de violência na Irlanda do Norte, que marca o  conflito de 30 anos entre católicos e protestantes na região. O menino Buddy (Jude Hill) vive com sua família da classe trabalhadora na cidade. Enquanto ele brinca em meio às paisagens destruídas e a violência extrema, sua família tenta administrar os problemas financeiros e sociais com que se deparam no período. Trata-se de uma família amorosa formada por Pa (Jamie Dornan), Ma (Caitríona Balfe), seu irmão e seus queridos avós. 

Dirigido e roteirizado por kenneth Branagh, Belfast recebeu sete indicações ao Oscar 2022 e venceu em melhor Roteiro Original. O filme mostra situações baseadas na trajetória do próprio cineasta irlandês. Assistimos ao conflito da rua em que Buddy mora e na qual se passa todo o filme. Assistimos também pelos olhos dele: uma criança que não entende por que de repente não pode gostar do seu vizinho. E parece ter que escolher um lado de algo que nem compreende. Em um momento, Buddy brinca livremente na rua e todos o avisam que sua mãe está chamando para almoçar. No momento seguinte, ele está desviando de pedras e de vidros quebrados. Em uma só tomada, muda tudo naquele rua...

Ele e sua família, de certa forma, estão protegidos, pois são protestantes e o grupo que está sendo preterido são os católicos. Mas a verdade é que se veem no meio de atos de violência em uma bairro pacífico no qual todos conviviam bem. Eles são forçados a tomar partido, não querem e isto os coloca em uma situação também arriscada. 

O diretor aproveita para demonstrar também seu gosto e admiração pela sétima arte ao mostrar Buddy e sua família se divertindo no cinema. O filme é preto e branco, mas os longas a que a família assiste na tela são coloridos. Aquela diversão traz cor, alegria. Referências aos longas "Noite de Natal" (1938), "O Calhambeque Mágico" (1968) e, principalmente, ao clássico "Matar ou Morrer" (1952) são realizadas durante o desenvolvimento da narrativa. A música tema deste último é inclusive utilizada em um momento que se se assemelha a um duelo na rua.

Quando a família toma uma decisão definitiva sobre o que fazer diante daqueles conflitos, Buddy sofre. Ele gosta dali, nasceu ali e, pela própria ambientação do filme, entendemos que, ali, é tudo que ele conhece.  Triste, ele pergunta ao pai: "Pai, você acha que eu e aquela menina temos futuro?" E o pai questiona: "Por que não teriam?" E ele responde: "Por que ela é católica.". O menino demonstra, em seu drama infantil e privado, a pressão de um conflito criado por adultos que muda toda a sua vida. Ontem, ela era sua colega de classe. Hoje, ela é alguém com quem, talvez, ele não possa ter um futuro.

Este tipo de reflexão, provocada pelo filme, é extremamente necessária. A separação maniqueísta de que,  se alguém pertence a um grupo, tem uma religião ou uma opinião diferente da nossa, já se torna alguém que precisa ser banido ou repelido, é perigosa e uma armadilha fácil de se cair. Kenneth Branagh nos lembra de  forma doce que, por trás de todos os grupos, existem pessoas com história para contar e vida para viver. Como todos nós. 

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Mães Paralelas

 

        Mães paralelas é o filme mais recente de Pedro Almodóvar e conta a história de duas mulheres que engravidam no mesmo período e se conhecem na maternidade no dia do parto de suas filhas. 

No início da trama, acompanhamos Janis (Penélope Cruz), uma fotógrafa com carreira consolidada, de 40 anos, solteira, sem filhos. Logo, no início, ela fotografa um famoso antropólogo, Arturo (Israel Elejalde). A partir deste encontro, os dois estabelecem um contato profissional que, rapidamente, evolui para um caso. O filme já mostra Arturo no apartamento de Janis e o diretor realiza um corte seco entre a primeira vez em que ele e a fotógrafa fazem amor por trás de uma cortina para Janis na maternidade em trabalho de parto. A vida da personagem, então, cruza-se com a de Ana (Milena Smit) no dia do nascimento das filhas de ambas e, aí sim, a trama começa a acompanhar as narrativas paralelas das personagens. A partir daquele momento, acompanhamos as mães paralelas. Até que, um dia, a vida delas acabará se cruzando de forma definitiva. 

Nas cenas da maternidade, descobrimos que ambas são mães solteiras, mas com disposições opostas em relação à situação. Janis comenta que não se arrepende da gravidez. E Ana rebate: "Eu, sim". Ana é menor de idade, vem de uma família disfuncional; sua mãe, Tereza (Aitana Sánchez-Gijón), está atrás de sucesso na carreira e seu pai Alex vive em Granada com outra família. 

Depois do nascimento de Cecília, filha de Janis, o filme realiza flashbacks para entendermos como foi o desenvolvimento da gravidez e do relacionamento entre o casal. Arturo bate à porta de Janis, e, ao abrir, assistimos a ela contar para ele que está grávida. Voltamos ao Arturo na porta  e, agora, Janis abre novamente para que ele conheça a filha. São passagens sutis que formam rimas com imagens.

Portas se fecham, portas se abrem, mas o fato é que Janis chegou ali solteira. Assim como Ana. Janis, decidida. Ana, assustada. A maternidade muda as duas de forma fundamental. E podemos dizer que, por força das circunstâncias, ao longo da trama, Janis torna-se a assustada e Ana amadurece na mesma proporção. 

Com roteiro e direção de Almódovar, observamos as características marcantes do diretor na história como protagonistas femininas fortes, a maternidade sempre transformadora e a cenografia composta de cores primárias. Algumas composições de cenas são verdadeiros textos como a que Janis, após descobrir uma verdade dura, abraça a filha e a cena escurece aos poucos, deixando ela e a criança por último no enquadramento; ou uma outra, na qual Janis e Ana entram em quadro simultaneamente por meio de portas paralelas.

Almodóvar foi condescendente e empático com as personagens e o o conflito causado pelo encontro entre as duas. Ele parece dizer "Entendo suas decisões. Vocês são humanas. Vocês são mães". Nós entendemos também. O filme trata da amizade. Da força do amor materno. De se colocar no lugar do outro. Aquelas vidas nunca mais serão paralelas. Bom para elas. 

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Anatomia de um Escândalo

 

                Anatomia de um Escândalo é uma série curta da Netflix, daquelas boas de maratonar. Conforme comenta Patrícia Kogut, crítica do jornal O Globo: "é uma série que motiva uma conversa depois que acaba o capítulo."

A produção retrata o que acontece com a vida da família de Sophie (Sienna Miller),  esposa de James Whitehouse (Rupert Friend), um político poderoso que vive de forma privilegiada e luxuosa, depois que um escândalo sobre James vem à tona e ele é acusado de um crime chocante.

A partir desta descoberta, acompanhamos as reações íntimas e as públicas daquele casal ao acontecido e também ao julgamento do crime; com tudo o que ele revela e que não foi dito em um primeiro relato. Principalmente, entre James e Sophie. Whitehouse costuma usar um termo "verdade essencial" para explicar à esposa por que deixou de contar certos fatos sobre os acontecimentos. 

Sophie, além de conviver com a traição recém descoberta, acompanhada da acusão de um crime cometido pelo marido, tem que manter a pose e fidelidade a James, ao mesmo tempo em que ouve coisas do tipo "Minha esposa dizia: Uma vez, legal. Duas, tchau" ou "Homem é assim mesmo, mas este aprendeu a lição" - justificativas clichês; que não se tornaram clichês à toa.

A série é entremeada de lembranças do começo do relacionamento, pelas quais podemos perceber como algumas características da relação e sua evolução já se destacavam. Há lembranças também de como o caso entre James e Olívia Lytton (Naomi Scott) aconteceu. As transições entre os personagens na cena lembrada e na que está acontecendo em tempo real são realizadas de forma bastante orgânica. Como se os personagens esivessem dialogando mentalmente com suas memórias e seus fantasmas.

Anatomia de um Escândalo é a adaptação de um livro de 2018 com o mesmo nome. O livro foi escrito pela correspondente política que virou romancista Sarah Vaughan. A trama aborda temas como as fraternidades em faculdades inglesas, o excesso de nepotismo que existe dentro dos altos escalões do parlamento britânico, a aristrocracia inglesa e seu lugar acima do bem e do mal, a fome de escândalos dos tabloides e o julgamento de Whitehouse; todos ingredientes excelentes para uma história que prende o espectador. 

Ao assistir, senti-me como uma jurada que tinha de decidir se o reú é culpado ou inocente. A direção nunca deixa isso claro. O crime ali apresentado possui uma linha tênue entre ter acontecido ou não. Por isto, a decisão sobre ele é tão delicada e importante. Em sua alegação final, a promotora Kate Woodcraft (Michelle Dockery) afirma "pessoas privilegiadas não podem burlar a lei sem sofrer consequências. O privilégio de James Whitehouse não se estende ao estupro"; enquanto a advogada de defesa Angela Regan (Josette Simon) rebate: "a vergonha, a raiva, a humilhação não deveriam ter o poder de reverter o sexo consensual em estupro".

Retomo, então, o comentário de Patrícia Kogut, temos vontade de discutir a série com alguém. Se assistirem e quiserem comentar, estou por aqui. 

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Coda - No Ritmo do Coração


 O filme "No Ritmo do Coração" conquistou os Óscares de melhor filme, ator coadjuvante e roteiro  adaptado de 2022. Filme independente, ganhou o prêmio principal do festival  de Sundance em 2021 e foi adquirido pela Apple pelo valor de US$ 25 milhões. O longa é uma refilmagem do francês "A Família Bélier", de 2014. A  grande novidade é que, nesta versão, os atores são realmente surdos. Na família Rossi, o pai Frank (Troy Kotsur), a mãe Jackie (Marlee Matlin) , e o irmão mais velho Leo (Daniel Durant) são deficientes auditivos. A caçula, Ruby (Emilia Jones), não. E por isto carrega uma responsabilidade bem maior do que a normalmente exigida de uma menina de 17 anos. Não à toa, Frank comenta em determinado momento do filme "Ruby nunca foi um bebê". O título original do filme é CODA, que em inglês é uma sigla para "filhos de pais surdos" (children of deaf adults, no original).

É neste paralelo entre a vida com a família, sendo esta filha, ouvinte, tradutora, acompanhando pai e irmão na pesca às 03:00 e a rotina de estudante do último ano colegial, que seguimos a vida da protagonista. A narrativa é construída nesta dicotomia entre as vidas praticamente paralelas de Ruby e os conflitos que ela enfrenta a partir desta divisão. Ruby ama sua família, entende seu papel ali, sabe o peso da sua responsabilidade; mas tem 17 anos, desejos, frustrações, sonhos e um talento nato. É difícil para ela. Estes paralelos irão inevitavelmente se cruzar e, apesar da leveza do filme, sentimos, com ela, o peso das decisões.

A história tem início quando Ruby em um impulso entra para o coral da escola. E descobre que tem talento para a música. Ela sempre canta, talvez, para compensar o silêncio com que convive desde a primeira infância. Até este talento para algo que seus pais não conseguem entender por completo traz a ela um conflito injusto, mas presente. Em determinado momento, a mãe a questiona: "Se eu fosse cega, você iria escolher pintar?" Não é justo com Ruby, mas também não é justo com sua mãe. Neste filme, não há bem contra o mal. Há uma condição que se impõe àquela protagonista e como a história se desenvolve a partir dela.

Por ser uma situação que, apesar de possível, não costumamos pensar sobre, ela afeta o espectador bem diretamente. Não tem como não se emocionar com a cena do concerto, na qual Ruby canta lindamente e os pais, em sinais, conversam sobre o jantar. Eles não têm como absorver o que está ocorrendo naquele palco. Em uma cena extremamente sensível, Frank percebe que a filha está fazendo algo realmente especial ali. Ela continua no palco, cantando, mas não a ouvimos mais. Está tudo em silêncio. Somos, naquele momento, o pai, que não ouve, mas começa a observar a reação da plateia ao que está sendo apresentado no palco. E, então, ele percebe. E, ao perceber, traz para nós um alento por saber que ele pôde, finalmente, compartilhar aquele momento com a filha.

Na sua capacidade imensa de se expressar para os pais e traduzi-los para os outros, Ruby se tornou uma excelente ouvinte.  E sua sensibilidade se desenvolveu para o som.  "Coda" é também uma expressão que significa seção conclusiva de uma composição (sinfonia, sonata etc.), que serve de arremate à peça. Ao final, em uma canção apresentada por Ruby, a letra afirma: "precisamos dizer mais "eu te amo" em voz alta". No filme, percebemos, que esta voz não necessariamente precisa de som para ser alta. 

domingo, 6 de março de 2022

A Filha Perdida

 

Em A Filha Perdida, Leda (Olivia Colman) é uma mulher de meia-idade divorciada, devotada à profissão como uma professora de literatura comparada. A história começa quando ela chega à Grécia para passar férias. Somos apresentados ao apartamento em que Leda se hospedará pelo zelador Lyle (Ed Harris) ao mesmo tempo em que ela conhece o local. Não é à toa que seu quarto  é iluminado pela luz de um farol de tempos em tempos, como se sinalizando que, para ela, não é possível dormir tranquilamente nem ali; ou que as frutas em cima da mesa pareçam ótimas, mas estejam podres nas camadas de baixo. 

A protagonista pretende relaxar, tomar sol, nadar e também ler e revisar textos. Mas, depois de alguns dias,  a chegada de uma família americana, numerosa e agitada, tira o foco de Leda e acaba servindo de gatilho para o resgate de uma culpa que ela não consegue expiar. Especialmente mãe e filha, Nina (Dakota Jonhson) e Elena, chamam sua atenção. Leda se aproxima da família ao encontrar a menina e devolver à mãe em um dia que a criança se perde na praia. 

 O filme é baseado no livro homônimo de Elena Ferrante. A autora escreve sobre mulheres complexas, imperfeitas, que carregam a culpa de suas decisões, sofrem, causam sofrimento - e, nesta caso, são mães. Quem conhece seus livros sabe que ela escreve de forma intensa. Dura. Descreve mulheres que não são uma coisa só. São várias. São passionais. São indecisas. Querem ser tudo. Mas ainda convivem em um mundo no qual este tudo não cabe. E a diretora Maggie Gyllenhal faz jus a autora. 

A protagonista é uma mulher que carrega a culpa de ter feito uma escolha predominantemente masculina. A controversa decisão que tomou no passado impôs a ela um fardo que passou a defini-la e persegui-la. Lyle, o zelador, que fez algo similar, não se julga e, com certeza, é julgado de forma bem menos condenatória. No filme, acompanhamos o conflito interno de Leda por meio de suas lembranças e, assim, convivemos com ela jovem, talentosa, inquieta, equilibrando-se entre uma carreira promissora e a maternidade. Será que cabe tudo? Para ela, em algum momento, não coube. 

Em uma cena, na qual Leda tenta trabalhar e cuidar das meninas pequenas, que demandam de forma insistente sua atenção completa, não há alívio para a mãe, para as meninas e, para nós, espectadores. A cena é  extremamente corajosa ao retratar uma situação cotidiana entre mãe e filhas em um ritmo que nos parece opressor, até cruel. Talvez, por se tratar de lembrança de Leda e foi assim que ela se sentiu ali.

O tempo todo, percebemos esta dualidade na protagonista. Este bate e assopra. Esta reflexão cíclica entre a decisão de partir e o que ela rejeitou quando fez esta escolha; em nenhum destes lugares, ela está totalmente confortável. O que representa sua reflexão interna é a situação que vive em suas férias. Ao mesmo tempo em que a protagonista encontra Elena na praia e a devolve para  Nina, ela rouba a boneca pela qual a criança tem tanto carinho como se dissesse “você não tem que necessariamente ser uma mãe quando crescer”.  

A história coloca a maternidade em um foco necessário. E parece nos dizer que ser mãe não é uma decisão simples ou óbvia. Como a própria Leda afirma em um dos seus trabalhos acadêmicos "a atenção é a forma mais pura de generosidade". É preciso que o olhar esteja também naquela mulher que não deixa de ser uma coisa para se tornar uma outra perfeita, estável. É preciso que esteja na criança, que só pede a atenção de que tanto precisa. É preciso, principalmente, que se saiba que nem sempre é aquela mulher que tem de levantar para fazer a criança parar de chorar. 

Casa Gucci

* Texto redigido em 8/12/2021

Casa Gucci está em cartaz nos cinemas. E é tão bom escrever isto. Voltar às salas escuras tornou-se uma atração por si só, mas, se tivermos um bom motivo, melhor ainda. E este filme pode ser um. Dirigido por Ridley Scott  (diretor, entre outros, de Blade Runner e Perdido em Marte), o longa acompanha a saga da família Gucci entre os anos 70 e 90 e retrata a chocante história do império da família por trás da casa de moda italiana. Além do diretor, o núcleo de atores principais é também um convite: Al Pacino como Aldo Gucci, Jared Leto (irreconhecivel) como seu filho Paolo Gucci, Jeremy Irons como Rodolfo Gucci é pai de Adam Driver - Maurizio Gucci - e, finalmente, Lady Gaga como Patrizia Reggiani, esposa de Maurizio.

A trama é baseada no livro “Casa Gucci: Uma história de glamour, ganância, loucura e morte”, de Sara Gay Forden. E, como descreve o crítico Kalel Adolfo, trata-se de uma "loucura cativante". O filme nos revela a importância e o poder que o nome Gucci carrega e tudo o que a família fez para conseguir e manter esse sucesso. O mais interessante da narrativa é assistir a esta dinâmica familiar ser desconstruída diante do poder da marca que se tornou a Gucci. O nome ficou maior que a família. E, em determinado momento, não precisou mais dela. Isto não veio à toa. É resultado de um jogo de poder, no qual seu aliado, hoje, torna-se seu algoz, amanhã. Prova disto é o assassinato de Maurizio Gucci, encomendado por sua esposa Patrizia. Ela conspirou para matar o marido em 1995, contratando um matador de aluguel e outras três pessoas, incluindo sua terapeuta e melhor amiga.

Quem for assistir ao longa na expectativa de acompanhar o planejamento  e o assassinato de Maurizio vai se decepcionar. Este não é o assunto principal do filme e é tratado como mais um acontecimento dentre os vários que levaram a família Gucci a perder a empresa que, até hoje, leva seu nome. 

Acompanhamos 3 décadas de uma história de amor, glamour, luxo, traição, decadência, vingança e assassinato. Assistimos aos membros da família caírem como peças de um jogo de tabuleiro. Mas, para Patrizia, uma vez no topo, não havia retorno. E, quando Maurizio sai de casa para não voltar, a consequência é a que já sabemos. Se a rainha sai do tabuleiro, é muito provável que o rei não sobreviva. Em toda esta história, quem nunca caiu foi a Gucci.