terça-feira, 2 de março de 2021

Mank

 

Em certo momento de Mank, o protagonista Herman Mankiewicz (Gary Oldman) comenta: "Você não pode captar a vida inteira de um homem em duas horas. No máximo pode deixar uma impressão". E é justamente isto que o diretor David Fincher faz com o famoso roteirista retratado no filme. E foi isto também que o próprio Herman e Orson Welles (Tom Burke) fizeram em Cidadão Kane ao retratar um personagem fictício baseado em William Hearst (Charles Dance), magnata da imprensa nos anos 1920 nos Estados Unidos. E que impressão deixaram. Kane ainda hoje é considerado por muitos o melhor filme feito em todos os tempos.

A produção da Netflix retrata o processo de criação do roteiro de Cidadão Kane e a entremeia com flashbacks da vida de Mank (apelido de Herman Mankiewicz), sugerindo de onde pode ter vindo sua inspiração para a história. Não por acaso, Cidadão Kane também passeia na vida do protagonista por meio de flashbacks. Fincher se inspira no clássico em toda a composição da sua obra. Mank conquistou seis indicações ao Globo de Ouro 2021. Por sua vez, Cidadão Kane foi indicado a nove Oscars em 1942 e venceu justamente o de Roteiro Original, dividido entre Herman e Orson Welles.

A essência de Herman Mankiewicz está ali: autodestrutivo, alcóolatra, brilhante e desconfortável; este é o roteirista que vemos na tela. O que ele fala não combina com quem ele é. Ele passeia e convive com o glamour de Hollywood, mas, o tempo todo, confronta este convívio. Em certo momento do filme, o produtor da MGM Irving G. Thalberg (Ferdinand Kingsley) diz para ele: "Eu sei quem eu sou, Mank. Não considero meu trabalho inferior. Não uso meu humor para me manter superior. Parto para a briga pelo que acredito.". Provavelmente, ao falar de si, Irving descreveu com perfeição o desconforto interior que o roteirista sentia. Quando seu agente comenta que o roteiro está bem escrito, mas cheio de diálogos fragmentados, Mank responde “Bem-vindo à minha mente.”. Talvez, ao roteirizar Cidadão Kane, o roteirista ficou à vontade para escrever da forma que gostaria e teve sua catarse em relação a tudo que o incomodava em Hollywood. Por isso, lutou para ter seus créditos no filme, mesmo após ter renunciado a eles por contrato. 

Repleto de homenagens, o filme é um exemplo da metalinguagem no cinema. David Fincher, em sua obra, mostra o roteirista criando a história, introduz seus flashbacks em forma de roteiro, retrata a produção inicial de Cidadão Kane, além de citar diversas situações que refletem sobre a sétima arte.

Louis B. Mayer (Arlis Howard), em Mank, afirma que o cinema é um negócio onde o comprador só ganha uma lembrança do que pagou, salientando que é preciso caprichar na história. Fincher compreendeu bem esta missão. E nos traz, além de uma impressão de Herman Mankiewicz, as intrigas e corrupção nos estúdios nos Estados Unidos logo após a Grande Depressão. A Hollywood da época do ouro produziu muitas estrelas e obras primas, mas isto teve um preço e o filme retrata estes bastidores. O que tem de fascinante, tem de chocante. Exatamente como o protagonista retratado.