sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Julie e Julia

03/12/2009

Julie & Julia não é uma obra-prima do cinema e seu formato parece com o de muitos filmes aos quais já vimos, mas sua estória merece ser contada. Isto porque assistimos a duas mulheres se descobrirem.Elas buscam e encontram aquela zona de conforto só delas e que, no fundo, todos nós procuramos.


O que vemos são trajetórias opostas e ao mesmo tempo bem parecidas. No final da década de 40, Julia Child (Meryl Streep) se muda para Paris com o marido diplomata, Karl (Stanley Tucci). Vai morar numa casa linda e clássica. Sobre a nova moradia, comenta empolgada: “É Versailles!” Em 2003, Julie Powell (Amy Adams) se muda para o Queens também com o marido (Chris Messina). Irão morar num apartamento de 85 metros quadrados em cima de uma pizzaria. A vida de Julia é sofisticada. A vida de Julie é classe média. Uma frequenta restaurantes franceses deliciosos, a outra cozinha em casa.

Ambas estão em busca de algo para preencher seu tempo, aliviar o tédio ou melhorar um dia exaustivo. E é em conversa com seus respectivos maridos que descobrem o que estão buscando. Karl, pergunta a Julia: “O que você mais gosta de fazer?” Ela responde: “Comer.” Ele sorri e comenta: “Isto você faz bem”. E ela acrescenta, divertida: “Cresço a olhos vistos!” . Enquanto isso, Julie, ao preparar uma torta cremosa de chocolate, comenta com o marido: “ Ao fim de um dia em que nada mais dá certo, é muito bom saber que a massa vai engrossar.” Cozinhar é um escape para Julie e uma arte a ser apreciada para Julia, mas, principalmente, algo que lhes traz conforto, aconchego. Ali, elas estão sempre à vontade.

Julia resolve, então, escrever um livro; Julie, um blog. A segunda fará em 365 dias todas as 524 receitas contidas no livro da primeira. Julia tornou-se a mulher que ensinou a américa a cozinhar e a comer. Julie a mulher que aprendeu. E, por fazerem algo que realmente lhes apraz, fazem bem. E insistem nas tarefas a que se propõem com determinação invejável. É muito bom saber que estas mulheres são reais. O que te motiva pode ser cozinhar, dançar, correr, ler, desenhar, pintar, escrever; para você, para seus amigos, para um grande público, mas deve trazer, principalmente, uma enorme satisfação pessoal. É com gosto que saímos do cinema. Gosto de viver, gosto de comer. E comer manteiga, ovos, doces! Ah! Pelo menos, de vez em quando. Bon Apetit!

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Tinha que ser você

Tinha que ser você (2009)
Branca Machado – 26/08/2009

O título original de “Tinha que ser você” é “Last chance, Harvey”. Traduzido: “Última chance, Harvey”. O original é mais apropriado à história. Harvey já teve chances na vida. Muitas. E, por um motivo ou por outro, deixou-as escapar. Não estava escrito que ele ficaria com Kate desde sempre. Mas, amadurecido e ciente de que já havia perdido muitas oportunidades, ele viu em Kate a chance de fazer diferente e melhor o que havia feito antes. E isto é sempre admirável. Mudar é difícil e requer sabedoria e esforço.

O filme começa com Harvey (Dustin Hoffman) ao piano. Paralelamente, acompanhamos Kate (Emma Thompson) chegar à casa de sua mãe. Ele está em Nova York; ela, em Londres. Harvey viajará para Londres neste mesmo dia para o casamento de sua única filha. Kate lê no metrô. Harvey tenta contar uma piada no avião, mas é cortado. Finalmente, ele chega ao aeroporto de Londres,onde Kate também chega para trabalhar.Harvey desce a esteira com suas malas e Kate tenta fazer uma pesquisa com ele, mas ele não para porque está com pressa.

Harvey chega meio perdido ao jantar oferecido à véspera do casamento. Ele não está hospedado na casa onde sua filha, sua ex-mulher e amigos estão, mas sozinho em um hotel, o qual, Suzie, sua filha, reservou para ele. Jean, sua ex-mulher e o atual marido, ao contrário, estão bem à vontade. E quem faz o discurso no jantar é Brian, o padastro de Suzie.

Quando Harvey finalmente vai falar algo, o celular dele toca. A filha o coloca na ponta da mesa “para ficar mais fácil dele sair”. Deve ter sido assim por toda a vida: Harvey tinha que sair para atender um telefone, para trabalhar. Mais tarde, ele pergunta à ex-esposa no bar: “Receia que eu volte a envergonhar você?”. A história daquele casal não foi feliz.

No dia seguinte, no restaurante do aeroporto, Harvey está de costas para Kate, ele sentado no banco do scoth bar, ela, lendo numa mesa. Segue-se a cena mais interessante do filme.Ainda nesta posição, ele olha para o lado, a mesa de Kate está um pouco a frente dele e pergunta a ela: “Bom livro?” Ela responde: “Seria bom, se eu pudesse terminá-lo.” Ele, então, pede um Black Label ao garçom e ela comenta, irônica: “Vai ajudar”. E ele responde: “Vai ajudar tanto quanto este livro e essa taça de Chardonnay.” Na medida em que o diálogo evolui, Harvey resume: “Eu perdi meu voo, fui despedido e minha filha gosta mais do padastro que de mim”. Kate conclui: “Certo. Você ganhou. Seu dia foi pior.” A partir deste encontro, os dois que, até então, acompanhávamos separadamente, serão vistos juntos.

Tinha que ser você trata de chances. Devemos aproveitá-las quando aparecem. E elas aparecem. Nada está perdido. Redimir-se é bom. Falar o que se sente também. Harvey afirma para Kate, quando ela comenta que se sente mais confortável quando a desapontam que, no caso deles, vai dar tudo certo. Não há como saber se vai mesmo, mas temos a certeza que, desta vez, ele vai agarrar esta chance.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Valsa com Bashir

Valsa com Bashir (2009)


Branca Machado – 03/08/2009

O início de “Valsa com Bashir” mostra imagens de cachorros raivosos, cinzas, olhos e dentes iluminados, correndo e latindo em uma direção. Trata-se de um sonho. Um sonho que persegue um ex-soldado do exército de Israel que cumpriu missão na 1a Guerra do Líbano, no início dos anos 80.

Eram 26 cachorros. Exatamente o número de cachorros que o soldado se lembra de ter matado no Líbano. Os cachorros anunciavam a chegada do exército nas cidades. O colega contou seu sonho para o diretor Ari Folman que também serviu no Líbano à mesma época. A partir desta conversa, Folman percebe que praticamente não tem memória da guerra: “Não lembro nada da Guerra do Líbano. Só de uma imagem.” Assim, ele decide remexer no seu baú de lembranças.

Ari Folman construiu, então, um documentário em animação. Um desenho adulto, raro e o primeiro longa de animação a ser indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Bem dosado, em alguns momentos, chegamos a confundi-lo com uma película normal e, por outras vezes, as nuances, que a animação oferece, são a única técnica capaz de transmitir a dimensão simbólica que o diretor almeja.

O diretor entrevistou ex- companheiros e testemunhas do ataque de milicianos cristãos a palestinos em Sabra e Shatila, na periferia de Beirute. E, com este resgate histórico do massacre, não deixou de reconhecer a culpa de Israel no evento e, de certa forma, expiar seus “cachorros”. Como um dos seus amigos diz no filme: “Não vamos a lugares que não queremos ir. A memória nos leva a lugares que precisamos ir.”. Assistimos às lembranças de cada um. Foi assim que eles viram. É como se eles desenhassem com as palavras.

Ari Folman não se lembrava da guerra, mas tinha lembranças das licenças que tirou e, sobre elas, chega a comentar: “Quando voltei, a vida continuava normalmente na cidade. As pessoas iam à boate, dançavam”. A vida continuava, apesar do drama no Líbano. Disso, ele lembrava. Talvez, pelo choque da descoberta.

A milícia libanesa cristã-falangista, revoltada com a morte de seu líder Bashir Gemayel, executou centenas (ou milhares) de palestinos observados pelo exército de Israel. Que apenas olhou “Estavam levando civis em caminhões”. E os soldados israelenses chegaram a comentar: “Estão atirando em pessoas”. Mas acrescentaram: “Não percebemos que era um genocídio” . O filme demostra que, no fundo, as autoridades sabiam e que a alegação de que o exército de Israel não percebeu a ocorrência do massacre é uma falácia.

A guerra parece ainda mais profana em animação. Acompanhada de músicas clássicas, chega a machucar: Os desenhos, a música e o tema não combinam. E, justamente por isso, reforçam a mensagem. Ao final, ainda assistimos às imagens reais documentadas à época do massacre que, no contraste com o restante do filme, formam o desfecho perfeito. Aquilo não foi um pesadelo surreal. Aconteceu. É fato.É triste.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

De profundis

Bem, agora que tenho um blog, vou postar uns comentários de vez em quando... Fui assistir ao "De Profundis" no fim de semana, uma animação repleta de cenas para serem apreciadas. Imagens lindas.
Ficou a impressão de que aquelas cenas, talvez, ficassem melhor, se vistas estáticas, em um livro, ou, até mesmo, em telas. E a gente escolhia aquelas que queria olhar por mais tempo. Não sei se a imagem em movimento foi a mais adequada aos desenhos e à história...

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Chega de Saudade

Chega de Saudade (2008)


Branca Machado – 12/04/2008

“Chega de Saudade” é uma frase de reviravolta. A pessoa resolve parar de mitificar o passado e passa a viver o hoje. Ótimo. Mas não é bem por aí... Dizem que saudade é uma palavra que só existe em Português. Que não há um equivalente perfeito a ela em nenhuma outra língua. Sentir saudade é saber que você teve momentos bons, que conheceu pessoas maravilhosas que, hoje, estão em qualquer outro lugar. Então, por que chega de saudade? Chega de lamento. Isso sim. A partir de agora, vou lembrar do passado com carinho, mas farei do presente algo de que eu possa sentir saudade logo ali.

É com este mote que o filme “Chega de Saudade” de Laís Bodanzky se desenvolve. Aquelas pessoas viveram. E pretendem continuar a fazê-lo. O filme se passa num clube de dança tradicional de São Paulo, decadente, com seu salão de tacos, iluminado, mesas à volta e palco ao fundo. Os freqüentadores estão, na sua maioria, com mais de 60 anos e estão sempre por lá. O objetivo é dançar. A trama se desenvolve toda numa noite só. E praticamente acontece no salão. Neste clube, “mulher não entra de calça”. A senhora que trabalha na chapelaria faz tricô no balcão. E há até aparelho de pressão para eventualidades.No baile, distribuem-se rosas vermelhas e correios elegantes. Os garçons vendem drinks e remédios.

Assistimos aos pequenos dramas de cada um no baile: Tônia Carrero como Dona Alice é uma dama, elegante, apaixonada e amante eterna de Seu Álvaro (Leonardo Villar); Cássia Kiss é Eurici, uma mulher resignada, discreta, mas igualmente apaixonada pelo galante Stepan Nercessian (Eudes). Este, por sua vez, é um Don Juan meio cafona que gosta de recitar versos ao pé do ouvido. Betty Faria é Elza, a coquete que não se conforma em não ser tirada para dançar. Figurinha carimbada no baile ela começa a imaginar se aquele dia de “chá de cadeira” não seria devido ao vestido que está usando. Maria Flor interpreta Bel, uma jovem, nova no pedaço, que se surpreende ao perceber como um baile deste tipo pode ser agradável. Há também a madame ninfomaníaca, o “gambazão”, com quem ninguém quer dançar e assim por diante.

Nada melhor para completar esta gama de variedades que a trilha sonora que as acompanha. Em um certo momento, quando já sabemos um pouco de cada uma das personagens femininas, ouvimos ao fundo: “Já tive mulheres de todas as cores, de várias idades, de muitos amores... Já tive mulheres do tipo atrevida, do tipo acanhada, do tipo vivida, casada carente, solteira feliz... Mulheres cabeça e desequilibradas, Mulheres confusas de guerra de paz ...” Aliás, a trilha do filme é perfeita. Dançante, agradável e envolvente. A imagem de Elza Soares, no palco, filmada de costas, com seu decote, sua tatuagem e músculos, com o baile ao fundo se tornará clássica.
A dança no baile não é glamourosa. Não se trata de show. É uma dança comum de um baile como muitos outros. Com pessoas normais que gostam de dança de salão. As rugas são bem enfatizadas pela câmera. Ao contrário de outras produções, a ruga ali é beleza. Beleza de uma vida. Beleza da saudade.

Há diálogos emblemáticos que enfatizam a mensagem do filme. Como quando o enfermeiro diz a Ernesto para ele parar de fumar e de beber. Ao que este replica: “Melhor mesmo é deitar no caixão e deixar a danada chegar, né?”. Este é o tipo de coisa que aquelas pessoas não vão fazer mesmo. Ou quando Eurici pergunta a Dona Alice: “Por que vocês nunca foram morar juntos?” E Alice responde: “Há coisas que só podem acontecer na juventude”. Em outro momento, Elza replica para uma colega: “Aqui não tem gatinho!” E a amiga, satisfeita: “Mas tem uns lobos velhos...”.

O filme não aprofunda, mas pontua um drama cada vez mais contemporâneo, usando o personagem de Dona Alice. Trata-se do drama do esquecimento. De pessoas perdidas porque não podem mais contar com o que, a esta altura da vida, possuem de melhor: a memória. Mesmo falando superficialmente sobre o tema, este conflito confirma ainda mais o grande tesouro que é sentir saudade.

Adriana Falcão diz que saudade “é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de novo e não consegue” e que lembrança “é quando, mesmo sem autorização, seu pensamento reapresenta um capítulo”. Ao longo do filme, percebemos que a saudade está aí para ser bem lembrada. E, principalmente, bem fabricada.

Vicky/Cristina/Barcelona

Vicky/Cristina/Barcelona


Branca Moura Machado, 20/11/2008

Esta não é a primeira vez que escrevo sobre um filme de Woody Allen. E, com certeza, não será a última. Seus filmes me motivam a escrever. Aliás, me dão vontade de estar neles.

O diretor retrata o país em que ambienta suas histórias de maneira íntima e envolvente. E não capta apenas sua beleza, mas seu charme. Em Vicky/Cristina/Barcelona, vemos uma Espanha linda, mas, principalmente, agradável, cultural e sensual. A Sagrada Família, o Parque Guell, a La Pedrera, o violão espanhol, a cidade de Oviedo; tudo reforça o efeito do país nas amigas Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlet Jonhanson).

Logo de início, elas são apresentadas por um narrador em off e descobrimos o motivo pelo qual resolveram passar o verão em Barcelona. Vicky precisa fazer pesquisas para sua tese de mestrado sobre a identidade catalã. Cristina almeja viver aventuras e, de quebra, descobrir o que quer, já que, até então, sabe muito bem o que não quer. Vicky está noiva e acredita na beleza do compromisso amoroso. Atriz iniciante, Cristina acaba de fazer um filme de 12 minutos sobre como é difícil definir o amor.

Certa noite em Barcelona, Vicky e Cristina vão jantar em um restaurante e, lá, avistam o pintor Juan Antonio Gonzáles (Javier Bardem) a quem já tinham visto na inauguração de uma galeria e sobre o qual sabiam: “Ele quase matou a mulher Maria Elena ou ela quase o matou...” Cristina olha para o pintor, visivelmente interessada. Ele acaba indo até a mesa das garotas e convidando-as para passarem o fim de semana em Oviedo. Vicky se ofende com o atrevimento do desconhecido. Cristina adora. Vicky o confronta: “O que vamos fazer em Oviedo?” Ele responde: “Vamos comer bem, tomar bom vinho e fazer amor!”, ela rebate: “Com quem?”, ele conclui: “Nós três, certo?”

Neste momento, é possível perceber o conflito de personalidades entre as amigas e a proposta de Juan só vem reforçar o paralelo entre as duas. Ele se afasta para deixar as amigas decidirem. E, como Cristina está bastante disposta a ir, Vicky a repreende: “Cristina, isto é impulsivo até para você! Um homem encantadoramente franco que bate na mulher!” E Cristina responde: “ Ele não é um desses caras produzidos em série!”

Em Oviedo, eles fazem turismo e passeiam pela linda cidade. Juan, elegante e charmoso, vai aos poucos vencendo a resistência das garotas. Juan seduz as amigas cada uma a seu modo. Vicky é apresentada ao pai do pintor que é poeta e se recusa a aprender qualquer outra língua, pois não quer “poluir sua escrita”. Ele também a leva para ouvir violão espanhol, algo que a emociona profundamente. Cristina é seduzida pelo básico: ele é pintor, espanhol, atrevido e completamente diferente dos homens americanos.

Quanto a Maria Elena (Penélope Cruz), sua ex mulher, ele fazia comentários que tanto a criticavam quanto idolatravam. Ela estava em Madri, mas volta para Barcelona e para a casa de Juan. A química e as cenas entre Juan e Maria Elena estão perfeitas. Sobre a volta da ex esposa, Juan explica para Cristina: “Eu sempre fui a conexão dela com a realidade...” Maria Elena é jocosa, alfinetada, talentosa e franca. E sabe introduzir um debate. No café da manhã, quando questionada por não falar espanhol, Cristina comenta que aprendeu chinês. Maria Elena pergunta: Chinês? Por quê? Cristina responde: “Porque é bonito”. A outra ordena: “Fala algo em chinês!” Cristina fala. Maria Elena pergunta: “E isto é bonito?”.

O filme ganha com a chegada de Maria Elena. Temos três mulheres que, na verdade, deveriam ser aspectos de uma só. A neurose e a racionalidade estão em Vicky. A leveza e a coragem de se fazer o que dá na cabeça em Cristina. E a loucura e a paixão em Maria Elena. As mulheres deveriam ter todas estas características equilibradas. O problema é que temos algumas demais, outros de menos. O que explica sermos tão complicadas, mas também interessantes.

Woody Allen sabe disso. Juan também sabe disso. O pintor não as julga. Deixa que elas sejam quem são sem grandes críticas ou censura. E as admira justamente por estes aspectos. Juan não gosta de ninguém e gosta de todas. Está ali, está aqui. Gosta, principalmente, de mulheres.

Como todo verão, este também acaba. E, de certa forma, Vicky e Cristina encontram o que foram buscar, mas com uma dose extra de latinidade, de loucura e de imprevisto. Vivem situações surreais. Nada mais apropriado, já que estão em terras espanholas. Barcelona é um personagem desta história e não apenas seu cenário, convivemos com sua identidade. Muito provavelmente aquela sobre a qual Vicky estava escrevendo.

Fatal

Fatal (2008)


Branca Machado – 03/11/2008

“Fatal” inicia-se com duas citações confrontadas sobre a velhice. Uma de Tolstoi: “...na profunda velhice, vive-se a vida mais valiosa e necessária...", a outra de Bette Davis: “A velhice não é para maricas”. O filme é todo em cima dessa reflexão sobre como o conceito de velhice é relativo e, de certa forma, pessoal.

Baseado no livro “Animal agonizante” de Philip Roth, “Fatal” conta a história de David Kepesh (Ben Kinsgley), professor de literatura na universidade de Nova York que faz sucesso em um programa cultural na televisão. A história é entrecortada por comentários de David que sintetizam o tipo de pessoa que ele é. Trata-se de um homem cheio de citações, interessante, intelectualizado e, por muita vezes, cínico.

Em sua aula, ele analisa a nova aluna Consuela (Penélope Cruz): “Ela sabe que é bonita, mas não sabe o que fazer com aquela beleza”. O professor oferece uma recepção aos alunos em sua casa e, logo, começa a seduzir Consuela. Sobre ela, ele diz a George O´Hearn (Dennis Hopper) , seu grande amigo: “Ela é uma mulher que merece ser cortejada”.

A diretora Isabel Coixet que entre outros dirigiu , “Minha vida sem mim” e “A Vida Secreta das palavras”, constrói cenas lindas nos momentos de amor entre David e Consuela. No dia em que a sedução se completa, escutamos uma trilha musical ao piano. O instrumento é tocado. Ele toca Consuela. Ele diz a ela: “Você é uma obra de arte”. Que ele, além de admirar, ajuda a completar. Já que a obra de arte se completa com o olhar do outro. Naquele momento, a imagem de Consuela é admirada por David e a cena admirada por nós.

O professor queria com Consuela o que sempre teve em suas várias relações: sexo, sem vínculo emocional. Um sentimento racional e, para ele, mais realista. Mas, desta vez, não funcionou e ele se viu apaixonado e, consequentemente, aterrorizado. Já que, ao que parece, aos sessenta anos, era a primeira vez que isto lhe acontecia. Em um certo momento, ela pergunta a ele: “Você já imaginou um futuro comigo?” e David responde: “Um futuro com você me assusta.”

Não é à toa que, em um dos seus comentários, ele diz: “E o implausível aconteceu... Meu cíume cresceu”. Para ele, ter ciúmes de alguém era algo que nunca iria lhe acontecer. Ele era racional demais para isso. David, um homem tão erudito, tão seguro, não dá conta daquele sentimento. E, diante dele, “agoniza”.

A partir daí, testemunhamos como a rigidez de conceitos, a cisma e o medo limitam e impedem a pessoa de andar, de viver. A relação de David e Consuela termina não por falta de amor, de paixão, mas por falta de coragem. Por falta de ousadia.

Após alguns anos, o casal se reencontra e, neste momento, reforçamos a tese de que a passagem dos anos transforma nossas vidas e percepções, mas não necessariamente nos torna melhores ou mais sabidos. E, como devidamente dito por George a David, devemos nos preocupar com crescer, não com envelhecer. Consuela diz a David: “Eu me sinto mais velha que você” e lembra de uma das aulas que teve com ele: “O livro será diferente, se você o ler daqui a 10 anos?”. Sim. Será. Tudo o que acontece e o que vivenciamos ou deixamos de vivenciar mudam nossa interpretação e comportamento.

No final das contas, David parou no tempo diante de muitos aspectos e acabou preso dentro do seu próprio conceito de liberdade. E, eu, que sou fã de citações, não poderia deixar de finalizar esta crítica, deixando uma para este protagonista que tanto as usou no filme: “Amplie sua vida, seu círculo, sua mente. Os limites não fazem mais do que deixar os outros de fora; e eles prendem você dentro”.

Noites de Tormenta

Noites de Tormenta (2008)


Branca Machado – 20/10/2008


Entre 1932 e 1946, Hollywood viveu sua época de ouro. Isso se deveu à fórmula de organização da economia cinematográfica americana que já vinha se delineando desde os anos 20. A combinação do star system , studio system e divisão dos filmes em gêneros diferenciados foi a grande causadora dessa ascensão hollywoodiana.

Neste contexto, surgiu o melodrama, um gênero típico da “idade de ouro” da “cidade do cinema”. Como gênero, ele possui um repertório de elementos constantes, trabalhados de maneira específica. Ocorre a apropriação de elementos da narrativa cinematográfica no sentido de caracterizar o filme como melodramático (trilha sonora, iluminação, interpretação, enredo).

O filme “Noites de Tormenta” de George C. Wolfe é um exemplo de melodrama romântico que segue a cartilha concretizada naquela época. E, por isso, funciona. Hollywood sabe fazer este tipo de filme. Eu sou apreciadora do estilo e já chorei muito em preto e branco ao acompanhar seus dramas. Agora, chorei colorido.

Diane Lane é Adrienne Willis. Recém separada, ela é mãe de Danny (Charlie Tahan) de 10 anos e de Amanda (Mae Whitman), uma adolescente. Jack (Cristopher Meloni) é seu ex-marido. Sabemos que ele a traiu.

Richard Gere é Paul Flanner. Médico, também separado, em conflito com a profissão, enfrenta uma crise de consciência e há um ano não fala com o filho. Paul acaba de vender sua casa. Os novos moradores o esperam à porta. Ele sai de carro e observa um pai brincando com o filho no jardim. Pela sua expressão, sabemos que aquela cena o tocou mais do que devia. Ele queria ser aquele pai. Em seguida, na barca, ele está amargurado. O rosto dele nos diz isso. O enquadramento nos diz isso.

Nas cenas iniciais, o diretor demonstra a fragilidade dos personagens em momentos delicados de suas vidas nos diálogos e na expressão de seus rostos. Eles simulam que está tudo bem, mas , quando a câmara se aproxima, eles estão amedrontados. Tais dicas nos diálogos e expressões dos personagens descrevem seu estado de espírito antes de eles se encontrarem.

Adrienne vai cuidar da pousada de sua amiga Jean (Viola Davis) no fim de semana. Localizada em Rodanthe, pequena cidade litorânea na Carolina do Norte, a pousada é mais um pretexto para que Ade possa refletir sobre a proposta do instável ex- marido que acaba de lhe pedir uma nova chance. Ela terá apenas um hóspede no período: Paul Flanner.

Paul e Adrienne são o par romântico do filme. A relação deles possui elementos do melodrama. Há conflitos, dificuldades para que fiquem juntos (o marido de Ade quer voltar para ela, sua filha pressiona para que isso ocorra, Paul está com uma viagem marcada), quando estão juntos, estão sempre sozinhos (só os dois) apesar de haver gente por perto.

A maneira com que a pousada e suas janelas azuis são enquadradas na primeira vez que aparecem em cena chega a ser literária. Lemos aquela imagem. Toda a cenografia remete à idéia de beleza, delicadeza e fragilidade. Naquela pousada, parece que tudo pode desmoronar de repente. O vento a ameaça o tempo todo. A pousada de janelas azuis é a Colina Penistone Crag de Heatchcliff e Cathy em “Morro dos Ventos Uivantes”; ou a Paris de Richard e Ilsa em “Casablanca”.

A clássica narração circular do melodrama romântico é outro elemento encontrado em “Noites de Tormenta”. Ao longo da história, trabalham-se temas que serão retomados posteriormente. Adrienne conta a Paul a lenda dos cavalos na praia. Esta lenda proporcionará um momento poético e um fechamento clássico para o drama do casal. A tormenta, prevista para aquele fim de semana em Rodanhte, ocorre. O amor de Ade e Paul se realiza. A tempestade simboliza o estado de espírito do casal ou, quem sabe, prenuncia o futuro. Ela faz parte da história deles e marcará momentos de virada no filme.

A paixão de Ade e Paul nos emociona. Trata-se de um sentimento mágico, doce e reconfortante. Assisti-lo, faz a gente relembrar, pensar e, por alguns instantes, ser Cecília (Mia Farrel) de “A Rosa Púrpura do Cairo”. Cecília ia ao cinema repetidas vezes para se encantar. Aquelas histórias lhe traziam esperanças. Faziam-na lembrar e reelaborar sua própria vida. Em um melodrama, o importante é ressaltar a ilusão de realidade e, para isso, o cinema é o melhor veículo. Com esta ilusão, saímos do filme, interpretando nossas histórias de forma mais bonita.

Ensaio sobre a Cegueira

Ensaio sobre a Cegueira (2008)

Branca Machado – 16/09/2008


Considero “O Ensaio sobre Cegueira” um dos melhores livros que já li. Ele trata do inusitado e de como o ser humano reage diante dele. A natureza humana está ali retratada de uma forma bem crua, primitiva, mas nem de longe falsa. Desta forma, ao mesmo tempo em que me fascinava a idéia de uma adaptação cinematográfica da obra, eu a temia. O resultado foi exato. Trata-se do filme do livro.Fernando Meirelles não fez concessões. A essência da obra de Saramago foi mantida e respeitada.

O início do filme é bastante envolvente e um acontecimento vai levando a outro em um ritmo frenético que nos deixa com uma real sensação de efeito dominó. O primeiro homem (Yusuke Iseya) está parado dentro de seu carro, esperando o semáforo abrir, mas, quando este fica verde, ele simplesmente não arranca. Buzinas são tocadas, e, no meio delas, um grito: “Estou cego!”. Diante daquele pavor, alguém (Don McKellar) se oferece para levá-lo em casa. O primeiro cego até chega a seu apartamento, mas seu carro segue com o “bondoso” ajudante. O que o faz refletir: “Que tipo de gente rouba de um cego? Devia ficar cego também”. Um desejo premonitório e muito adequado ao desencadear da trama.

Já no consultório do oftalmologista (Mark Ruffalo), o primeiro cego descreve sua cegueira: “É como nadar no leite...”. Mais tarde, incomodado com o fato de os olhos do paciente estarem perfeitos, o médico discute com a esposa (Julianne Moore) possíveis explicações para aquela doença repentina. Mas, no dia seguinte, o próprio amanhece cego: uma cegueira branca. E chega a gritar com a esposa que tenta ajudá-lo: “Não! Você tocou em mim! É contagioso!”.

As pessoas vão ficando cegas. O Ministério da Saúde age rapidamente com a resolução de colocar os doentes em quarentena. O medo torna a todos basicamente egoístas. E o isolamento dos doentes é a única solução para os saudáveis. O enfermeiro que vai buscar o médico está todo empacotado. Sua roupa chega a ser uma caricatura.A mulher do médico mente que está cega para acompanhá-lo. No prédio, há um monitor no qual um apresentador dá orientações: “Acima de qualquer particularidade, o que vocês fazem é um favor à nação. Cada paciente deve escolher sua cama. Cada ala tem um capitão”. Só os infectados podem entrar ali. A mulher diz ao médico, quando exploram o local: “Sorte sua, não enxergar”.

Fernando Meirelles, juntamente com César Charlone, diretor de fotografia, apropriadamente usaram iluminação estourada, brilhante, às vezes, até incômoda à platéia, além de optar por passagens de cena brancas. Em certo momento, o médico conversa com a esposa, a voz dele de um lado, a voz dela de outro e, na tela, o branco. Aquela cegueira incomoda: “Sempre igual. Sem dor. Um mar branco”. A trilha sonora, composta por Marco Antônio Guimarães do grupo UAKTI, é bastante apropriada. Basicamente instrumental, ela pontua determinados momentos de maior doçura ou tensão. E, quando a música realmente aparece, é num momento mágico em meio ao caos que aquele prédio se tornou.

O velho da venda preta (Danny Glover) chega à quarentena, com um rádio a tiracolo e novidades sobre o caos que a cidade se tornou.Cada vez mais pessoas foram contagiadas em momentos e lugares diversos e conclui: “O pânico espalhou a cegueira, ou a cegueira espalhou o pânico? As pessoas decidiram ficar em casa. E o problema do trânsito foi resolvido...”. É este o momento em que o rádio toca uma canção. Um momento no qual se respira e é possível relaxar.

Quando o grupo (a mulher do médico, o médico, o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, o menino estrábico, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta) chega às ruas, descobre-se que, afinal, o lado de fora está igual ao de dentro: em meio à sujeira, as pessoas viraram bichos em busca de comida.

E, se, no livro, como escreve o colega Roberto Domingues em sua coluna, “há belos quadros pintados com palavras”; no filme, temos o privilégio de vê-los pintados com imagens. No apartamento do médico, sentimos alívio, descanso e redenção que culminam com um jantar no qual o grupo brinda com água servida em taça de champanhe. A cena do banho das mulheres na varanda é retratada com bastante delicadeza e o diálogo entre elas demonstra um afeto recém descoberto: “Nos meus sonhos, você é linda!”.

A falta de nomes próprios foi mantida no filme. O velho com a venda preta diz à moça de óculos escuros (Alice Braga): “Eu conheci aquele lado seu que não tem nome. E que, afinal de contas, é o que realmente somos, não é?”. Não sabemos seus nomes, mas conhecemos sua essência. Saramago não está preocupado com explicações ao acontecimento trágico e inusitado, mas com a degradação moral que normalmente o acompanha. Funcionamos bem em condições normais, mas coloque um pouco mais disso ou daquilo que poucos não se revelarão. E, com algumas exceções, o resultado não é bonito. Mas, após um bom banho, rosto e corpo limpos, quem sabe, até purificados, não fomos abençoados com uma visão mais lúcida? Quem sabe agora realmente enxergaremos?

O Escafandro e a Borboleta

O Escafandro e a Borboleta (2008)

Branca Machado – 22/07/2008

A abertura de “O escafandro e a borboleta” apresenta uma montagem de radiografias. Naquelas radiografias, a princípio, impessoais, existe um problema. Um problema sério. Ele é raro, inexplicável e, acima de tudo, injusto. Trata-se da síndrome Locked in ou síndrome do encarceramento na qual o paciente está preso dentro do próprio corpo. Ele escuta, sente, lembra, mas não anda, se move ou mesmo consegue falar ou engolir. Sua única forma de comunicação é piscando os olhos. No caso de Jean Dominique Bauby (Mathieu Amalric), piscando somente o olho esquerdo. E foi desse modo que ele escreveu um livro. Baseado nele e no processo de sua escrita, o diretor Julian Schnabel realizou este filme.

A câmera subjetiva predomina por todo o início. Conhecemos a doença juntamente com Jean Bauby, que acaba de acordar de um coma. O olho dele se abre, a câmera se abre para a gente. Nosso olhar é o olhar de Jean, doente, deitado. O olhar dele sobre os outros. A princípio, um olhar confuso, desajeitado, que tenta entender seu novo plano de visão, conhecer o ambiente. Ele chora, a câmera embaça. Os enquadramentos são os dos olhos de Jean. Basicamente, a matéria prima do cinema é o olhar, mas, na maioria das vezes, um olhar não percebido. No caso do filme, nós o percebemos. Aqui, ele, além de instrumento, torna-se assunto.

O neurologista entra no quarto. Jean, então, enxerga o tronco do médico, até que este se senta e seu rosto toma todo o campo de visão do paciente. O médico explica: “você teve um derrame e ficou em coma por 03 meses”.Em seguida, pede para Jean dizer seu nome. O paciente diz, mas diz em pensamento. Nós, espectadores, ouvimos; o médico, não... Dominique não está sendo ouvido. Aliás, ele nem move a língua. Ele entende e responde tudo, mas não consegue demonstrar este fato! Ele descobre isso, nós descobrimos isso. Aos poucos, aquelas radiografias ganham significado. Ali, está selado um destino. O destino de um homem de 42 anos com três filhos e uma carreira brilhante.

O filme é recheado de comentários de Jean, nos quais, além de captarmos sua personalidade irônica, percebemos que, até naquela situação, ele foi capaz de rir de si mesmo: “Estou pronto para a cadeira de rodas... Que veredicto”.Ou “Ela não é minha esposa... É a mãe dos meus filhos”.Ou ainda: “Eu tenho 42 anos e sou tratado como um bebezão...”.

Durante sua doença, como não podia deixar de ser, ele reflete sobre sua vida: “Tenho sido cego e mudo todo o tempo ou minha atual situação me fez perceber minha verdadeira natureza?”; “Além da minha visão, tenho minha imaginação e minha memória. Elas não estão paralisadas. Elas são o modo de eu sair do meu escafandro. São minhas borboletas!”. Trata-se de um filme sobre ver, imaginar e lembrar. E sobre do que isso é capaz.

A partir daí, o filme assume a linguagem clássica e, depois de dividirmos com Jean sua familiarização à doença, podemos compreender e refletir melhor sobre o que veremos dali para frente. Jean pensa em como era. E o vemos, então, ativo, brilhante, alegre e confiante. Quando o filme volta para ele doente, é a primeira vez que o vemos de frente após o acidente. A câmera agora não é mais o olhar dele, mas ele refletido. E o que vemos, após o derrame, merece todo este preparo. Não dá para acreditar que a pessoa que pensa aquilo tudo é aquela que vemos ali. Simplesmente não combina.

Em uma palestra recente, David Lynch - diretor, entre outros, de “Veludo Azul” -comentou: “A memória é tão bonita”. Muitas vezes, ela é a salvação. Jean considera um milagre ter se animado a continuar vivo. E, além disso, escrever um livro. E não deixa de ser um milagre. Um milagre da lembrança e de para onde você pode voar a partir dela. Ele dedica o livro a seus filhos, desejando a eles muitas borboletas. A mesma coisa desejo aos leitores do Assista-me: muitas e muitas borboletas! E que vocês consigam encontrá-las nos lugares onde menos esperam.

O Sonho de Cassandra

Sonho de Cassandra (2008)
Branca Machado – 02/05/2008

Em “O sonho de Cassandra”, Woody Allen fala sobre as escolhas e suas conseqüências. Ele enfatiza o resultado dos atos. Mas não para os outros. O foco está em quem os cometeu. A conclusão é de que não podemos nos livrar do depois. E de que o agora é um conceito bem mais complexo do que, a princípio, devemos considerá-lo.

Estamos em Londres. Os irmãos Terry Blaine (Colin Farrell) e Ian Blaine (Ewan Mcgregor) pensam em comprar um barco. O barco custa 6000 libras. É caro. Aliás, muito além do que os irmãos podem pagar. Não possuem o dinheiro. Terry tem 400 libras. Quantia que ganhou em apostas. E Ian, 800 que estava guardando para futuros investimentos. Ian comenta com Terry: “É muito mais do que imaginei que não poderíamos pagar!” Compram. Endividam-se. O barco vai se chamar “O sonho de Cassandra”. E não é à toa. O diretor, em certo momento, filma os irmãos chegando ao barco do ponto de vista do interior da cabine. Como Cassandra, o barco enxerga o mal. Prenuncia a catástrofe. E nada pode fazer para impedi-la...

A cena inicial da compra do barco resume como os irmãos levam a vida: São inconseqüentes. Querem mais que do que tem. E, para isso, não se importam em gastar muito mais do que imaginam ganhar em médio prazo. Esta ação impensada desencadeia uma série de acontecimentos que levarão os irmãos a uma tragédia. Além disso, a ênfase no valor do barco serve de comparação com as quantias que aparecem ao longo do filme. Nas apostas e empréstimos que Terry contrai por causa dele, no dinheiro que Ian precisa para seu investimento. Se 6000 libras já era uma quantia alta para os irmãos, a coisa só vai piorar.

Durante o filme, a mãe dos irmãos (Clare Higgins) comenta que Ian sempre foi o cérebro, vivia fazendo planos. E Terry era o esportista. Terry comenta com Ian que “Sorte é uma questão de fases”.Em outro momento, ele diz ao irmão: “Desde pequeno você gosta de bancar o figurão...”. Um dia, quando desesperado, Terry pede dinheiro emprestado à mãe, ela replica: “Beber e Jogar! Estas são suas respostas para os problemas da vida!”. Por meio deste tipo de comentário, chegamos a conhecer bem o tipo e o caráter de Terry e Ian. E percebemos que a firmeza e a prudência não são o forte de nenhum dos dois.

Obviamente, os irmãos se encrencam. Terry começa a perder no jogo. E muito mais do que ganhou: “perdi aqueles 30000 e mais 90.000... Estes eu tomei emprestado a juros bem altos”. Ian se apaixona por Ângela (Hayley Atwell) uma mulher que sonha alto e para quem ele fingiu ter outro nível desde o primeiro encontro. Terry tem de pagar os agiotas. Ian deve manter o alto padrão de Ângela e seu próprio nível de exigência. A sorte deles virou.

Em seu aniversário, a mãe recebe um telefonema de seu irmão milionário Howard (Tom Wilkinson), dizendo que ele virá no dia seguinte e quer proporcionar um almoço comemorativo para todos. Numa sutil troca de sorrisos entre Ian e Terry, percebemos que eles consideram esta visita uma solução. O tio é uma espécie de provedor. Um mágico que resolve com pouco esforço o problema dos sobrinhos. Mas não desta vez...

Após o almoço, os irmãos pedem para conversar a sós com tio Howard e lhe falam sobre seus infortúnios. Ian encerra: “Nós vamos achar um jeito de te pagar!”. Ele diz: “Qualquer coisa, tio”. Tio Howard, então, conclui: “Eu preciso que meu ex-funcionário Martin Burns desapareça...” Diante da indignação dos sobrinhos, ele replica: “Não se constrói o que eu construí sem quebrar algumas regras! Vocês nunca questionaram a minha ética quando precisaram de mim!“. Durante todo o filme, Allen nos preparou para concluirmos que os irmãos vão acabar aceitando a proposta.

Encontramos diálogos típicos do diretor ao longo da trama. Ao planejar o crime, Terry diz: “Vamos tentar fazer da forma mais humana possível, ok?”. O irônico brinde da vítima com os irmãos na festa no qual Burns exclama: “À vida!”. Durante os planos, Ian tem dificuldade em explicitar o verbo “matar” e seu tio comenta: “achei que tínhamos superado esta parte.”

Em nenhum momento, o diretor mostra o crime. O foco são as conseqüências, o castigo. Novamente, remetendo-se a obra “Crime e Castigo” de Dostoievsky, Allen foca as inquietudes e tormentos de Terry, após o crime. E, ainda na figura de Terry, não deixa de haver uma citação a “O Jogador”, também de Dostoievsky. Aliás, a atuação de Colin Farrell está perfeita. Sempre atormentado, ou pela vontade de jogar ou pela necessidade de ser punido, o ator nos transmite a perfeita dimensão de sua angústia.

Com trilha sonora clássica e adequada composta por Philip Glass, “O sonho de Cassandra” é uma trágica história muito bem contada. Em “Melinda e Melinda”, Woody Allen trata de comédia e de tragédia do ponto de vista do discurso. Em “Ponto Final”, ele flerta com a tragédia, aproxima-se dela. Aqui, ele a aborda em todos os seus atos. E o faz com maestria.

Senhores do Crime

Senhores do Crime (2008)

Branca Machado – 27/02/2008

A enfermeira Anna (Naomi Watts), de plantão na noite de Natal, atende à prostituta russa Tatiana (Sarah-Jeanne Labrosse) que acaba morrendo no parto e deixa seu bebê e um diário aos cuidados do hospital e, conseqüentemente, de Anna. A enfermeira, por motivos que mais tarde compreenderemos, comove-se e resolve descobrir alguém relacionado ao bebê que possa ficar com ele. Por isso, acaba indo ao restaurante de Semyon (Armin Mueller-Stahl), único nome que ela reconhece no diário deixado por Tatiana, todo escrito em russo, tentar descobrir algo sobre a moça.

Apresentado como um senhor meigo, sensível, carinhoso, que gosta de música e toca violino, Semyon trata Anna com cavalheirismo, mas com certa indiferença. A princípio, ele não dá muita importância ao que a enfermeira diz. Até que ela menciona a existência do diário. Ali, a coisa muda de figura. Anna, já está se despedindo, quando comenta: “Vou descobrir mais quando o diário dela for traduzido...” Aqui está o leit motiv ou o MacGuffin, conceito criado por Alfred Hitchcok para definir um objeto que serve de pretexto para fazer a história avançar. Muito mais que a gravidez e a morte de Tatiana, é este comentário de Anna que desencadeia a ação do filme.

A partir dali, Semyon quer saber mais detalhes sobre a enfermeira. Mas, Anna não é boba. E a interpretação sutil de Naomi Watts, faz-nos perceber que ela não dará todas as informações que ele está pedindo. Ao sair, Anna, cruza com Nikolai (Vuggo Mortensen, candidato a melhor ator no Oscar 2008 por este papel), motorista de Kirill (Vicent Cassel), filho de Semyon, que pergunta sobre sua moto. Ela diz: “Ela foi do meu pai. Tem valor sentimental”. E NiKolai replica com ar cínico: “valor sentimental... Já ouvi falar disso”. Este simples comentário já nos descreve bem a personalidade do motorista. E posteriores observações de Kirill completam o conceito: “Ele não é meu motorista. É o agente funerário”.

Em um jantar em família, com Anna, sua mãe e seu tio, descobrimos que a enfermeira terminou há pouco um namoro com um médico negro. E que sofreu aborto de um filho dele. Paralelamente, há outro jantar. O dos russos. No restaurante. E, ali, também descobrimos o poder patriarcal de Semyon. E a autoridade que exerce sobre todos. Como também em Pequena Missa Sunshine ou Embalos de Sábado à noite, usa-se uma refeição familiar para que possamos descobrir mais coisas sobre os protagonistas em comentários casuais e discussões familiares.

O filme é todo entremeado com trechos do diário de Tatiana. Aos poucos, cada um tem acesso a ele que é lido por um, por outro, e até por ela mesma (em off). Contando-nos uma história nada bonita sobre garotas russas que vão para a Inglaterra com a promessa de uma vida melhor.

Quando Semyon vai ao hospital e diz a Anna: “Você sabe onde eu estou. E eu sei onde você está”, faz uma ameaça velada. E Anna tem consciência do perigo que está correndo. A diferença entre este filme e muitos outros em que temos uma parte fraca ameaçando a estabilidade de algo bem mais poderoso, é que Anna não é vítima, não é inocente, sabe no que está se metendo. É esperta e isto a ajuda muito.

Durante o filme, nossos conceitos inicias sobre alguns personagens mudam. Em uma discussão bem atual de que não dá para concluir coisa alguma pelas primeiras aparências. Semyon, Kirill e Nikki acabam se revelando bem diferentes de como, a princípio, são apresentados. À medida que a maldade evolui na trama, descobrimos suas verdadeiras facetas. E, Nikki resume bem onde Anna se meteu: “Você está do lado errado, Anna. Você pertence às pessoas boas. O lado de lá”.

Novamente assistimos à David Cronenberg dirigir Viggo Mortensen. Em Marcas da Violência, o ator faz papel de um homem comum e pacato que esconde uma natureza e um passado bem violentos. Em “Senhores do Crime”, temos o contrário: Um personagem, em todos os aspectos, violento, que, no fundo, tem algo de muito digno. Um homem que só pensa na sua causa. Na sua missão. E que, ao final, torna-se ambíguo como ela.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Meu nome não é Johnny

Meu nome não é Johnny (2007)

Branca Machado – 07/01/2008

“Meu nome não é Johnny” é sobre perdão, redenção, sobre alguém que pega uma chance que lhe foi dada e faz por merecer. Durante o filme, acompanhamos João Guilherme Estrella (Selton Mello) ganhar uma nova vida. E quem enxerga além dos fatos e proporciona a ele este grande presente é a juíza Marilena Soares (Cássia Kiss) que, apesar da evidência do crime de tráfico cometido pelo protagonista, soube interpretar e definir a pena além da letra fria da lei.

Enquanto João esteve preso, a juíza lhe enviou um cartão de Natal com uma citação de Marguerite Yourcenar que dizia: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos (...)” No filme, percebemos que João demorou a nascer e errou muito até olhar realmente para si mesmo.

Baseado no livro de Guilherme Fiúza, o diretor Mauro Lima reconstrói a história verdadeira de João Guilherme Estrella, que cresceu como o típico garoto da zona sul carioca, e, na idade adulta, transformou-se no maior vendedor de drogas do Rio de Janeiro. No início, somos confrontados com cenas do protagonista preso na Polícia Federal, alternadas com cenas de filmagens caseiras de sua infância, com ele, menino, vestido de cowboy. Com esta montagem paralela, o diretor nos diz: vamos mostrar
 como é que este garotinho foi parar ali.

Em seguida, voltamos à infância de João e percebemos que, dali, já vinham características de uma pessoa que não sabia e não foi educada para perceber o limite entre o certo e o errado. Numa cena emblemática, o garoto, aproximadamente aos 06 anos de idade, solta um foguete dentro da sala de televisão. O pai, ao invés de repreender o filho pela travessura perigosa, acaba o levando ao Maracanã para ver a final do Vasco. Mais tarde, após a separação dos pais, João fica morando com o pai. Mas ele é ausente, está doente, deprimido, deixa o filho dar loucas festas quase todas as noites e não o censura ou reprime. João chega a comentar: “Meu pai é tipo um vizinho, sabe?”.

Ele não tinha maiores ambições além de se divertir. E isto é bem caracterizado em seu primeiro diálogo com a namorada, Sofia (Cléo Pires): “Eu não faço nada, mas sou bom no que faço. Neste ramo de não fazer nada”.Mas, para não fazer nada, e, ao mesmo tempo, dar festas, beber, fumar maconha e mais é preciso ter dinheiro... Por que não vender para comprar? A lógica é estabelecida e João fica famoso, seu novo negócio é um sucesso. Sua postura perante sua atividade é resumida por um amigo preocupado: “Você fala como se fosse vender pulseirinhas de crochê em feira de artesanato!”.

João ganha muito e gasta muito. O negócio cresce. Fica internacional. Uma cena que retrata a inconseqüência de Johnny e Sofia, incluída com eficiência pelo diretor, é aquela em que eles rodam as ruas de Barcelona num carro conversível, tomando champanhe, a sirene da polícia faz “úúú´”, sinalizando para o carro parar, e Sofia responde do carro, divertida “úúú´”. Além de comprovar a ingenuidade do casal diante do que estão fazendo, ainda mostra que, apesar de tudo, eles sempre serão marginais e que a qualquer momento podem ser pegos.

De volta ao Rio, o céu está cinzento. Sofia começa a implicar com as constantes festas e bagunças do namorado. O ritmo do filme muda como um prenúncio do que virá. Johnny se arrisca mais, ousa mais e, conseqüentemente, é descoberto. Ele vê os amigos sendo presos: a ficha cai. Há o Johnny e há o João. E, neste momento, nasce o João.

Em seu julgamento, ele diz para a juíza: “Não sou nenhum Pablo Escobar. Não tenho quadrilha e não tem fortaleza. Meu nome não é Johnny. Meu nome é João. Eu nunca soube o que é dentro e o que é fora da lei”. Sua confissão é emocionante. Ele estava cheirando mais de 100 gramas de cocaína por semana, na época em que foi preso. E não deixa de ser maravilhoso e recompensador, assistirmos ao próprio João Estrella, em entrevista recente à Marília Gabriela, citar a seguinte frase como regra de vida: “A lucidez é a melhor de todas as drogas”.

Jogo de Cena

Jogo de Cena (2007)

Branca Machado – 26/12/2007
O documentário “Jogo de Cena” brinca com a realidade e a ficção. Com a emoção verdadeira e com a mesma emoção interpretada. E acaba comprovando que interpretamos no dia a dia e que somos capazes de sentir emoções reais, quando representamos.

O diretor Eduardo Coutinho que, entre outros, dirigiu o brilhante “Edifício Master”, partiu de depoimentos de mulheres que procuraram a produção depois de um anúncio colocado nos classificados dos jornais. Em junho de 2006, 23 delas foram filmadas no Teatro Glauce Rocha. Em setembro do mesmo ano, atrizes interpretaram, a seu modo, as histórias contadas por elas. Desta forma, aquelas mulheres se disponibilizaram a dividir e contar suas vidas aos espectadores. E aquela câmera não deixou de ser um divã.

Assistimos, então, a uma gama variada de depoimentos corajosos, sobre vidas diferentes que valem a pena ser contadas. E que, por isso, mantêm nosso interesse durante todo o filme, apesar de as mulheres estarem sentadas em uma cadeira, olhando para a câmera em tempo integral.

O filme realiza uma experiência interpretativa. Ao colocar atrizes, entre elas, Fernanda Torres, Marília Pêra, Andréa Beltrão, interpretando as histórias relatadas, constrói-se uma mescla do real com a representação. Algumas vezes, aparece a personagem real, depois a atriz; em outras, vemos a atriz, depois a mulher. E, ainda, temos a o relato todo contado por uma e, depois de algumas cenas, o mesmo caso contado pela outra. Sobre esta experiência, Fernanda Torres comenta: “O personagem fictício pode ser mais medíocre porque você o constrói. Mas o personagem real mostra o lugar que você deveria ter chegado... E, aí, fica difícil!”.

O assunto que impera nos depoimentos é a maternidade. Trata-se de um tema que acaba funcionando como interseção entre as mulheres e as atrizes. Onde elas se identificam. E se emocionam plenamente. Andréa Beltrão chora, quando a mulher verdadeira não chorou. Marília Pêra deixa de chorar, quando a verdadeira chorou. Qual foi o real? Qual foi o representado? O que descobrimos é que há uma boa dose de interpretação no real, mas também uma boa dose de realidade na interpretação.

As mulheres que estão ali, apesar de relatarem percalços amargos na vida, são corajosas, firmes. Elas se expõem e é comovente perceber como as emoções se afloram, apesar da câmera (ou por causa dela?). São capazes de dizer coisas maravilhosas. E comover. Ouvimos frases como: “Você acredita que tem gente que não olha para o céu?”; “Eu me amo tanto, eu me adoro tanto que já nem ligo mais para esta coisa de amor!”; “Achar homem hoje em dia é igual a pegar papel em ventania!”. São momentos únicos e, o que é melhor, não roteirizados.
A temática do filme lembrou-me da peça “Seis personagens à procura de autor”, de Luigi Pirandello. Na obra de Pirandello, seis personagens, rejeitadas por seu criador, invadem um ensaio e tentam convencer o diretor da companhia a encenar suas vidas. Tal como as mulheres reais que, em “Jogo de Cena”, falam de suas vidas, as personagens o convidam a encenar seus dramas, mostrando que mereciam ter uma chance. Na peça, as personagens não querem ser representadas pelos atores da companhia. No filme, há um paralelo entre as interpretações, mas, se observarmos bem, acabamos concordando com Pirandello: ninguém pode representar melhor a história de uma pessoa que ela própria.

Os Donos da Noite

Os Donos da Noite
Branca Moura Machado – 23/11/2007

“Os donos da noite” é a história de uma vida virada pelo avesso. Levando um homem, ironicamente, ao mesmo objetivo final: ser o dono da noite. O homem em questão é Bobby Green (Joaquin Phoenix). E sua trajetória parece perguntar: Até que ponto você pode ser feliz à custa de tantas outras coisas, segredos, família, dignidade? Até que ponto você pode ser inconseqüente? Até que ponto você pode não tomar partido? E parece também responder que um dia a vida cobra e que você terá que responder por suas escolhas.

No início, há uma seqüência de fotos em preto e branco que retratam ações da polícia. Em uma delas, a câmera se aproxima dentro da própria foto, enfatizando o escudo usado pelos policiais, à época, no qual está escrito: “We own the night (somos os donos da noite)”.

Dirigido por James Gray, o filme se passa na Nova York de 1988, período em que o tráfico de drogas na cidade aumentou sensivelmente e a relação dos traficantes com a polícia estava se tornando uma guerra. Fato que explica o estranho slogan policial enfatizado anteriormente: alguém tinha que “tomar as rédeas” da noite em Nova York. E este alguém tinha que ser a polícia.

Bobby gerencia a boate El Caribe para um russo chamado Marat Bujavev (Moni Moshonov), conhecido como o “tio”. Ele trabalha na noite e conhece as figurinhas “carimbadas” que a freqüentam. Mantém um ótimo relacionamento com todos. E, para evitar conflitos, esconde o fato de que pertence a uma família de policiais. Seu pai Burt Grusinsky (Robert Duvall) e seu irmão Joseph (Mark Wahlberg) são oficiais exemplares. Bobby é o filho que seguiu outro caminho, o mais longe possível dos dois.

Só que o tão longe se torna tão perto quando Joseph passa a investigar Vadim (Alex Veadov), o sobrinho do “tio”, e pensa que Bobby pode ajudá-los. No diálogo em que ele pede a ajuda do irmão, percebemos o quanto os dois possuem posicionamentos diferentes. Joseph diz a Bobby: “ A cidade está em pedaços. Cadê seu senso de responsabilidade?”. E Bobby rebate: “Não tenho. Não tenho mesmo.” O pai, mais tarde, resume para Bobby que seu distanciamento não poderá durar muito tempo: “Cedo ou Tarde, você estará conosco ou estará com os traficantes. Há uma guerra lá fora.”

Bobby vive numa maratona de drogas, jogos, bebidas, noitadas intermináveis. Joseph e Burt consideram a missão policial como uma missão de vida. Não é à toa que James Gray pontua a irritação de Sandra (Maggie Kiley), esposa de Joseph, em virtude da exagerada dedicação do marido ao trabalho, na cena de sua condecoração. Logo, percebemos que, naquela família, cada um é, ou pretende ser, dono da noite de maneira diferente. Um conflito interessante entre os irmãos é estabelecido. Até o dia que Joseph sofre um atentado... E Bobby ouve da boca do próprio Vadim que ele é o responsável por este crime. Não dá mais para Bobby ficar de fora. Está na hora de ele decidir de que lado está.

De certa forma, a trajetória de Bobby é a de Michael Corleone (Al Pacino) em “O Poderoso Chefão”. Só que, enquanto um vai para lá, o outro vem para cá. Mas os dois são arrastados para estes lados pelas circunstâncias e não por vontade genuína. O sentimento de família e o amor fraterno é maior que o objetivo de vida que eles se impuseram. E isso é belo. É gratificante. E, apesar de se tratar de um filme com temática violenta, não deixa de dar uma lição natalina, ao valorizar a história de vida e as relações que realmente contam nas decisões difíceis e definitivas do protagonista.

Leões e Cordeiros

Leões e Cordeiros
Branca Moura Machado – 23/11/2007

“Leões e Cordeiros” trata de decisões. Decisões pessoais, decisões que afetam o mundo, decisões jornalísticas, sempre difíceis e, principalmente, relacionadas. Ele parte de vários questionamentos e reflexões sobre a guerra no Iraque. Como, por exemplo, do fato que cerca de 3555 americanos morreram desde o início da guerra. Será que está valendo a pena?

O filme transita entre 03 núcleos associados numa relação de causa e efeito: a entrevista do senador Jasper Irving (Tom Cruise) à Janine Roth (Meryl Streep); a discussão entre o professor Stephen Malley (Robert Redford) e seu aluno Todd (Andrew Garfield) e na nova ação militar de soldados americanos no Afeganistão.

Jasper quer justamente apresentar com exclusividade à Janine a nova estratégia militar americana que “mudará o rumo da guerra”. Eles terão 01 hora para esta entrevista e Janine se surpreende: “01Hora! Isto tudo é pânico?” E Jasper responde: “Não. É determinação”. O senador possui a seguinte citação de Roosevelt em sua sala: “Se eu tiver de escolher entre honradez e paz, escolho a honradez”.Isto nos faz compreender melhor a personalidade dele e sua obstinação em transformar o fracasso contra o terrorismo em vitória.

Dirigido por Robert Redford, “Leões e Cordeiros” se passa praticamente em tempo real como o clássico “Matar ou Morrer”. Esta ação militar que o senador apresenta e justifica com detalhes à Janine está acontecendo ao mesmo tempo em que a entrevista se realiza. A conversa entre o professor e o aluno, que, aliás, também terá duração de 01 hora, acontece concomitantemente às outras duas situações. Assistimos à teoria na entrevista de Jasper, à prática na ação dos militares e à reflexão sobre elas na mudança de comportamento e vontade do aluno questionada pelo professor.

O embate entre a imprensa e a política ali incluído é instigante e necessário. Quais são os limites? Até onde a imprensa deve simplesmente contar os fatos e em que ponto ela deve interpretá-los e tomar uma posição?Janine não tem medo de confrontar Jasper e ele, por outro lado, é capaz de responder a altura. Logo de início, Jasper agradece à Janine sobre uma matéria escrita por ela anos atrás em que a jornalista comentava que ele era o futuro do seu partido (Republicano). O senador comenta o assunto e a agradece pela matéria. Ela então replica: “Considerando a situação do seu partido, como sabe que não foi pejorativo?” Janine, de certa forma, representa a voz do espectador. É sua catarse. Em certo momento, ela pergunta ao senador sobre a nova ação no Afeganistão: “Basicamente, é matar gente para ajudar gente?” Em outro momento, ela rebate: “E sair de lá? Não é uma opção?” Ele responde: “Não. Não é... O povo americano precisa de uma vitória”.

Por outro lado, Jasper também discute o papel da imprensa e o da própria jornalista desde o início da guerra. Ele a enfrenta: “Quando vocês passaram a confundir a opinião da maioria com a opinião correta? No começo, vocês foram a favor da intervenção americana no Iraque!”. Será que a imprensa não está simplesmente acompanhando a opinião pública sem fazer a diferença? Será que ela não está simplesmente se descartando do processo como o aluno Todd, mas numa dimensão muito maior?

A narrativa do filme é circular e recorrente. E é sempre um prazer para o público reconhecer algo que já foi citado anteriormente e fazer a associação pretendida como quando Todd enfrenta Malley: “Você quer que eu seja algo maior? Um congressista?” Neste momento, voltamos à entrevista de Jasper e é como se Todd perguntasse: Você quer que eu me torne um Jasper? Ou ainda, quando Jasper afirma solenemente à Janine que não pretende concorrer à Presidência da República, o que nos remete também a uma observação anterior do aluno ao professor.

A discussão entre Malley e Todd, no fundo, é um recado para todos nós. O professor está ali tentando convencer o aluno a não se alienar, não desistir, não se render ao cinismo. A mensagem do professor é atual e relevante. E a palavra de ordem é engajamento. O professor afirma ao aluno: “Professores não são mestres, são vendedores”. E todd rebate: “E o que você vende?” Malley: “Você a você mesmo. O problema somos nós! Que tentamos manobrar entre as chamas!” O fato é que, se não apagarmos as chamas, vai ficar cada vez mais difícil escapar delas. E todos temos ou, pelo menos deveríamos ter um papel social relevante.

Os soldados Arian (Derek Luke) e Ernest ( Michael Peña) que no momento aparecem em ação no Afeganistão também foram brilhantes alunos do professor Malley. E, à medida que tomamos conhecimento do quanto eram envolvidos e conscientes, passamos a entender suas causas e motivos. Muitos mais nobres, ideológicos, profundos e complexos que uma demonstração de fidelidade e apoio ao governo Bush. E, desta forma, passamos também a compreender a citação do soldado alemão sobre o exército britânico na 1a Guerra Mundial que também justifica o nome do filme: “Trata-se de um exército de leões comandados por cordeiros”.

O Último Rei da Escócia

O Último Rei da Escócia (2006)
Branca Machado – 10/02/2007

Em 1970, Nicholas Carringan (James McAvoy) se forma em Medicina na Escócia e, entediado, resolve “brincar” com o globo terrestre e “vai para o primeiro lugar que parar”. Na verdade, ele já sabia para onde queria ir, pois o Globo pára primeiro no Canadá; em segundo, Uganda. Ele vai para Uganda como oficial médico estrangeiro.

Nicholas chega a um país esperançoso onde o ex-ditador Milton Obote acaba de ser deposto. Em seu lugar, nada mais nada menos que Idi Amin (Forest Whitaker). Nicholas está bem motivado na África. “Curte” tudo. Vê na esperança daquele povo em seu novo presidente seu ideal como médico refletido. Ele quer fazer a diferença. E Idi Amin representa muitas mudanças positivas. Nicholas assiste a um discurso de Amin na aldeia em que trabalha. O presidente diz coisas do tipo: “Posso vestir um uniforme de general, mas, no fundo, sou um homem simples”. Naquele momento, vemos Nicholas realmente empolgado com o novo presidente e com o país.

Após esse primeiro discurso, com todos muito felizes na aldeia, há um close em Amin e a festa ao fundo. Sua expressão séria e cruel destoa daquela alegria popular cheia de esperança em tempos melhores. Trata-se de uma cena de prenúncio. É como se o diretor Kevin Macdonald nos dissesse: “Esta alegria não vai durar... Vocês não conhecem Idi Amin?”.

Nicholas, após realizar um atendimento de urgência em Amin, cai nas graças do presidente, tornando-se seu médico particular. Mas, muito além de médico, torna-se principalmente seu conselheiro. O ditador escolhe Nicholas porque “É bom ter por perto alguém que não tem medo de dizer o que pensa”. É... Mas, no caso de Amin, lembre-se de dizer só coisas agradáveis.

Se existe uma verdade universal, é que a gente se engana com as pessoas. Tanto para melhor quanto para pior. A partir de seu trabalho com Amin, Nicholas entra em um mundo de fantasia. Sua Uganda é perfeita, confortável, limpa como o hospital em que trabalha. O médico vive em um país idealizado, longe do país do ditador e suas atrocidades. Mas, aqui nos cabe refletir sobre aquela expressão “fingir de bobo para viver”. Até que ponto Nicholas realmente não sabia? Lembrei-me também da secretária Traudl Junge de “A Queda! As últimas horas de Hitler”, será que é mesmo possível não perceber as barbaridades praticadas por seu patrão ou sua situação está confortável e é melhor não ver?

O filme é repleto de boas atuações a começar com Forest Whitaker que, inclusive, ganhou o Oscar de melhor ator por seu desempenho. James McAvoy dá um ar de inocência e estupefação ao seu jovem Nicholas perfeitos para o personagem. O ministro da saúde de Amin nos comove só pelo olhar.

Ao final, o longa muda de ritmo e sua montagem lembra uma viagem alucinógena, uma espécie de vídeo clipe. Parece que o caos interior de Nicholas é externado por meio da câmera, da música e das cenas rápidas. Esta mudança é muito útil ao discurso do filme. Ela nos puxa em um movimento de espiral para a verdade cruel.

Estamos assistindo à África retratada em muitos filmes ultimamente. “Diamante de Sangue”, “O Jardineiro Fiel”, “Hotel Ruanda”; todos mostram uma África perdida, explorada por dentro e por fora, sem sinal de solução. Mas, por mais que a gente saiba que há “patrocínio” externo, é difícil engolir uma guerra civil. Como uma tribo não se reconhece na outra? Por que, de repente, seu vizinho torna-se seu inimigo mortal? Em uma discussão, Amin questiona Nicholas: “O que você veio fazer na África? Brincar de homem branco com os nativos? Pois, nós não somos brinquedos, somos reais!” Nesta África real, talvez, a resposta seja simples como a do personagem de Leonardo DiCaprio em “Diamantes de sangue”: “ I.E.A! Isto é a África!”.

Medos Privados em Lugares Públicos

Medos Privados em Lugares Públicos (2006)

Branca Machado – 25/09/2007

Não sei se cheguei a gostar do filme “Medos Privados em Lugares Públicos” de Alain Resnais. Sei que ele me fez pensar, saí do filme diferente do que entrei. E isto já o torna bom cinema.

O filme agride. Nós o digerimos com dificuldade. Ele não tem nada de óbvio. Não há tiros, guerra ou injustiça. Mas, no fundo, trata da pior violência que pode existir: aquela que a gente comete com a gente mesmo. Com o que fazemos das nossas vidas. Por nos mantermos em relacionamentos falidos, por nos contentarmos em fazer nada, por acabar com nossa auto-estima, por nos isolarmos, por nos escondermos atrás de crenças. Enfim, por aceitarmos assim e não de outro jeito.

A câmera chega por cima de um prédio de apartamentos em Paris. Depois, entra em um imóvel específico e a primeira palavra proferida num plano detalhe da boca de uma mulher é “petit” (pequeno). E isso não é à-toa. Somos pequenos ou nos fazemos pequenos? Penso que, ali, Resnais introduz seu tema que é justamente nosso encolhimento diante da vida.

Paris neva. Ao contrário da Paris de “Um lugar na Plateia”, esta é triste, branca, espelhada e cheia de ambientes fechados. Não há Torre, não há La Concorde, não há luz. Aqui, também conviveremos com um grupo restrito de personagens que interagem entre si. Mas não se trata mais do mundo das artes, do glamour, mas o da rotina, do acordar e do voltar para casa, do comer e assistir televisão.

Nosso microcosmo restringe-se a 07 personagens: Thierry (André Dussollier) e Charlotte (Sabine Azéma), que trabalham na imobiliária. Dan (Lambert Wilson) e Nicole (Laura Morante) que são noivos e procuram um apartamento. O pai Arthur (Claude Rich – voz) e o filho Lionel (Pierre Arditi). Thierry mora com Gaëlle (Isabelle Carré), sua irmã, e é quem apresenta os apartamentos para os noivos. Lionel é o garçom do bar que Dan freqüenta. Charlotte, à noite, toma conta de Arthur, pai doente de Lionel.

As pessoas convivem, mas não se relacionam plenamente. Acompanhamos o dia a dia de cada um com seus segredos, aflições e rotinas. Os irmãos moram juntos, mas não se conhecem.Thierry com sua fita de vídeo e Gaelle com sua flor vermelha no casaco. Aqueles objetos simbolizam muito mais do que suas simples funções: distração e enfeite. Mas só quem sabe disso somos nós. Thierry não sabe que a flor de Gaelle indica uma terrível solidão. E Gaelle não sabe como a fita de vídeo suscita uma enorme carência em Thierry, inclusive física. O noivo, apesar do que sua noiva (mais) deseja, não procura emprego. Passa o dia no bar e, sempre que está perto de Nicole, deita-se, ou melhor, esparrama-se. Mesmo assim, ela procura um apartamento de 03 quartos, pois Dan precisa de um escritório. Em certo momento, ela afirma para Thierry: “Preciso de um escritório para o meu noivo”. Ele então pergunta: “E o que ele faz?” E ela: “Não faz nada...”. Ela sofre por isso. Ele, não.

Charlotte, colega de Thierry, representa a tentação, mas, ao mesmo tempo, a castidade. Emociona Thierry e, de certa forma, aplica uma doce vingança em Arthur.Já Lionel sente que tem uma profunda dívida com o pai e se pune por isso. Ao longo da história, percebemos porque o pai não o perdoa e o motivo pelo qual agride o filho com sua tara escancarada e exagerada.

No filme, neva o tempo todo.Todas as transições de cena são realizadas com imagens da neve caindo. A cena passa, a neve fica... A princípio, do lado de fora. Mas, ela acaba entrando. Invade o ambiente fechado. O frio penetra, gela, como se mostrasse que entre aquelas pessoas não há como o calor chegar.

Resnais mostra o drama de cada um e de todos nós. Pois, a gente não chora a dor dos outros. A gente chora a nossa. Em certo momento, Lionel reflete: “Eu sou o que eu sou... Afinal, o que podemos ser além do que somos?” Penso que o diretor responde a esta pergunta de um modo fatalista e simplesmente mostra as situações como inexoráveis e inevitáveis. Mas quem sabe em vez de medos privados não se pode começar a cometer atrevimentos, ousadias e, com essa coragem, a neve pare de cair constantemente? Não custa tentar.

Um Lugar na Plateia

Um lugar na Platéia (2007)

Branca Machado – 20/08/2007
Uma platéia vai a um espetáculo para rir e (ou) chorar. Para ir para o mundo da fantasia, e, assim, reformular a sua realidade. No filme “Um lugar na platéia”, temos o prazer de reinterpretar o nosso mundo com mais cores, mais alegria, mais beleza. Nele, acompanhamos a garota Jessica (Cécile de France) começar um trabalho novo em um Café na Avenue Montaigne em Paris. E não é a toa que o Café se chama Caffe du Theatre. Por ali, circulam grandes artistas, músicos, diretores e profissionais das artes.

Como Alice no País das Maravilhas, a garçonete transitará entre personagens variados com quem trava diálogos inusitados em ambientes diversos. A semelhança com a obra de Lewis Carrol também se dá pela forma da narrativa onde “O humor tem presença constante, em que também se encontram críticas ora sutis, ora irônicas ou até mesmo mordazes à sociedade”. Alice “ardia de curiosidade”, a avó de Jessica a ensinou a gula e a curiosidade. Alice é uma hóspede temporária daquele mundo fantasioso, onde as coisas acontecem numa outra lógica. Jessica também entra num mundo ao qual não pertence e que, de certa forma, possui uma outra lógica. A lógica do sofisticado, da fama, do luxo, das artes.

O filme começa com a voz em off de Madame Roux (Suzanne Flon), avó de Jessica, afirmando: “Adoro jóias. Adoro luxo. Não os tinha, mas resolvi trabalhar no meio deles.” Jessica também resolve trabalhar no meio deles para proporcionar um pouco de luxo à avó tão adorada.O início do filme é muito bem elaborado com ótima ambientação. A câmera passeia por Paris e, neste passeio, introduz os personagens naturalmente. Ela passa pelo pianista correndo ao lado do rio Senna, passa pela atriz dormindo no táxi, e pelos objetos de arte que serão leiloados sendo colocados em um caminhão estacionado. Tudo bem natural, sem soar forçado. O microcosmo pelo qual nossa personagem vai transitar está formado. Os personagens pontuados casualmente terão seus próprios dramas retratados: O pianista Jean-François Lefort (Albert Dupontel), a atriz Catherine Versen (Valérie Lemercier) e o colecionador de artes Jacques Grumberg (Claude Brasseur).

Vamos conhecê-los juntamente com Jessica. Posteriormente, acompanharemos cada um deles separadamente. Estão todos em crise, menos Jessica. O irônico é que, de certa forma, ela é a personagem que teria mais motivos para estar infeliz, mas mantém sempre uma postura agradável, delicada e positiva.Para ela, há dois tipos de pessoas no mundo: As que atendem o celular se perguntando “Quem é o pentelho agora?”; e as que perguntam: “Quem poderá ser?”. Jessica está sempre aberta para a vida e para o que ela pode oferecer. E, quando vai contar sua própria história, afirma: “É uma longa história e, quando começo, não consigo parar”.

O filme nos dá um prazer a mais que é o de apreciar o belo. Paris está muito bem retratada no dia a dia de cada um dos personagens. Quem a conhece, terá vontade de revê-la. Quem nunca esteve lá, reafirmará seu desejo de conhecê-la um dia. Também é agradável observar todas aquelas peças de arte. Obras de Miró, Brancusi, Rodin e mais desfilam pelos nossos olhos e é incrível imaginá-las como pertencentes a uma pessoa apenas!

O pianista é o contraponto da atriz. Tanto um quanto o outro está em busca da platéia ideal. O problema é que ele quer o público dela e ela, o dele. Jean-François quer ser popular. Catherine odeia a própria popularidade. Acha-a vulgar. Pensa que a popularidade enfraquece o valor do seu trabalho. O pianista quer tocar para muita gente. Em um certo momento, ele diz para Jessica: “Desculpe...”. Ela pergunta: “- Por quê?” E ele: “Porque você é jovem, afinada e nunca conseguiu ir a um concerto. Porque considera esse tipo de mundo, um mundo a parte”.

Toda essa discussão parece ser uma crítica à ideia de que o sofisticado não convive com o popular. Há uma certa ironia sobre o que deve ser considerado refinado. Jacques, o colecionador de artes, comenta que seu pai costumava dizer a ele: “A gente deve comprar tudo o que os outros odeiam”.Ou seja, tudo aquilo que não é popular. O irônico é que este mesmo colecionador termina por oferecer sua coleção a uma platéia para ser leiloada. Trata-se de uma discussão leve que o filme conclui demonstrando que, no fundo, todos querem ter ou ser platéia.

Ao final, todos os eventos que estavam sendo preparados e ensaiados acontecem ao mesmo tempo, no mesmo dia e hora: o concerto, a peça, o leilão. E são exibidos com um eficiente uso da montagem paralela. Quem está num espetáculo, perde o que está acontecendo no outro. No caso, cada um tem sua platéia. E nós somos a platéia de todos! Numa troca de diálogos, o namorado pergunta à Jéssica: “O que você está procurando?”. Ela responde: “Uma boa cadeira de orquestra. Nem muito longe, nem muito perto”. E precisamos de mais alguma coisa?

O despertar de uma paixão

O Despertar de uma Paixão (2007)


Branca Machado – 11/07/2007

É sempre interessante assistir a um filme baseado em um livro. Principalmente, se você gostou do livro. Parece que tomamos carinho por aquela história e queremos vê-la bem retratada. Eu sempre fui fascinada por adaptações.Como criar diálogo de uma situação apenas descrita? Como resumir em duas horas uma estória de 500 páginas? Estes são apenas alguns dos desafios que o roteirista de uma adaptação enfrenta. E não deixa de ser fascinante observar como tais questões foram resolvidas.

“O Despertar de uma Paixão” é baseado no livro “O Véu Pintado” de Sommerset Maugham. Adaptado por Ron Nyswaner, que também escreveu, entre outros, o roteiro de Philadelphia pelo qual foi indicado ao Oscar, e estrelado por Edward Norton como Walter e Naomi Watts como Kitty, o filme realiza mais plenamente a relação dos dois que o livro. E, neste sentido, mata uma vontade latente que o romance deixa em aberto. Em compensação, o livro aborda aspectos bem mais humanos e, de certa forma, cruéis que o filme deixa de lado. O livro é mais verdadeiro; o filme, mais romântico. E, de certo modo, tornam-se complementares.

Com narrador onisciente, o livro conta tudo sob o ponto de vista de Kitty. E, por isso, no filme, a situação inicial é estabelecida pelas lembranças desta personagem. Walter acaba de aceitar um emprego como médico numa remota vila da China que está sendo arruinada pela cólera. Ele leva Kitty com ele como forma de se vingar de uma traição. Encontramos, então, Kitty em sua viagem atormentada pelas lembranças que a levaram até ali e que surgem como flashback. Tais cenas esclarecem a tensão no relacionamento dos dois. O filme exibe essas circunstâncias bem rapidamente e se concentra na transformação dos dois, principalmente de Kitty, a partir de sua chegada na vila.

As interpretações estão perfeitas. As descrições do livro estão lá no trabalho dos atores e na criação de algumas cenas que resumem certos aspectos de suas mentes. Há um momento entre Walter e Kitty na cama, ainda em Xangai, no qual eles começam a se beijar. Walter, então, pergunta: “Devo desligar o abajur?” Kitty responde: “Para quê?” E ele decide: “Vou desligar o abajur”. Tal cena, que só existe no filme, resume traços da personalidade dos dois que no livro são descritos em situações variadas: Ele, retraído, tímido. Ela, desembaraçada, moderna. Kitty, no livro, percebe que Walter tem uma “triste capacidade de desembaraçar-se”. Para mim, essa cena resume tal fato com delicadeza. Há outro diálogo, este tirado do livro, que também mostra o quanto os dois estão distantes um do outro em termos de personalidade. Kitty reclama de que Walter não conversa e ele observa: “Eu me acostumei a falar só quando há algo importante a dizer” e ela responde, irritada: “Se todos falassem apenas quando têm algo a dizer, a humanidade seria calada!”.

Somerset Maugham escreve grandes verdades sobre o amor e sobre nossa incapacidade de ser coerente neste quesito as quais o filme inteligentemente conserva. Em um certo momento, Kitty reflete: “Seria ótimo se amássemos alguém pelas suas virtudes...”. Outra reflexão clássica está na afirmação de Walter: “Você tem razão. Foi bobagem procurarmos um no outro qualidades que nunca tivemos”. Quantos de nós não insistem em mudar características de nossos parceiros? Ou deseja que eles tenham outro modo de agir?

O romance de Maugham mostra como é possível e necessário conhecer e compreender as razões dos outros. O motivo de eles serem assim e não de outro jeito. Kitty começa a descobrir o marido na vila. Pelo bonito e corajoso trabalho que ele realiza, pela adoração das freiras e pelo carinho dos moradores por ele. Seu olhar se transforma e torna-se um olhar bonito, de admiração, gratidão, respeito. Ocorre que o véu que pintaram para Kitty com todas suas regras sociais e de comportamento foi arrancado da personagem pelos acontecimentos. Ela passa a olhar sem o véu. E, com isso, ela se transforma em uma pessoa melhor, madura e verdadeira. E esta transformação também transforma Walter. Um sentimento maior surge a partir daí. De fato, a vida é sempre mais forte. E, se cortarmos nossas amarras e deixarmos nos levar, teremos grandes surpresas e lindos aprendizados.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Scoop - O Grande Furo

Scoop – O Grande Furo


Branca Moura Machado – 07/05/2007

Meu pai diz que assistir a um filme do Woody Allen é como tomar uma boa taça de champanhe. Eu concordo com ele. A gente sai leve de seus filmes, relaxados. Sou fã do diretor e, mesmo quando dizem que ele está perdendo a forma, que seus roteiros estão inacabados, considero-os originais, engraçados, sutis e inteligentes.

A comédia Scoop - O Grande Furo não é exceção. Durante o filme, assistimos à Sondra (Scarlett Johansson), jornalista recém formada em visita a Londres, investigar alguns assassinatos realizados por um serial killer conhecido como o “Assassino do Tarô”. Seu principal suspeito é Peter Lyman (Hugh Jackman), um aristocrata inglês. O personagem que a auxilia em toda a investigação é um mágico chamado Sydnei, interpretado pelo próprio Woody Allen. Em um certo momento, Sondra diz: “Eu sou uma pseudo-repórter investigativa que se apaixonou pelo objeto investigado”. E esta frase de certa forma resume o filme.

A pista que dá origem à investigação da repórter é típica de Allen. Sondra está assistindo ao show do mágico e acaba como “cobaia” de um dos seus truques. Quando ela está dentro da caixa “desfragmentadora de moléculas”, recebe a visita do espírito de um famoso repórter investigativo recém falecido que lhe dá a pista para iniciar tal investigação. Só mesmo Woody Allen para resgatar um morto através de uma caixa “mágica” e, com uma premissa dessas, fazer a história dar certo.E sem soar ridículo.

O que seria clichê não é clichê. A morte está lá, encapuzada, sem rosto, com seu cajado em punho, mas ela é isso mesmo: a morte. E, quem está em seu barco, continua sendo quem é, mas, agora, para a eternidade. A morte se torna leve e sem muito mistério. Ela é. Em seu barco, escutamos frases inseridas em diálogos casuais entre mortos do tipo: “Mais tarde naquele dia, eu morri de repente”.

Sondra irá investigar a mais alta classe da aristocracia inglesa e leva o mágico com ela. Em uma discussão entre os dois, Sydnei comenta que os nobres ingleses possuem um sistema próprio de classes: os aristocratas e a ralé. Neste sentido, o filme lembra Ponto Final, do mesmo diretor, por trabalhar com o que há de mais nobre na Inglaterra e com o outro lado: aquele que tenta se aproximar desse núcleo. Com expressões do tipo “vamos caçar raposas”, ou: “Eu a ouvi afogar. Terminei rapidamente meu chá com biscoitos e vim correndo te salvar”, Woody ironiza o modo de ser e viver da nobreza inglesa.

Hugh Jackman interpreta um verdadeiro gentleman, charmoso e elegante na medida certa. Como o provável suspeito, ele nos deixa sempre com uma pulga atrás da orelha sem saber se podemos confiar nele. No filme, estamos como Sondra: quase confiamos, e, principalmente, queremos muito confiar. Jackman lembra Cary Grant como Jonh Robie, bon vivant e ex-ladrão, em ”Ladrão de Casaca” de Hitchcock. Ambos possuem personalidades dúbias, mas extremante sedutoras.

Com uma boa trilha sonora, locações elegantes e tiradas  como: “Excitante na minha vida é jantar sem ter azia depois” ou “O homem é um mentiroso e um assassino. E falo isso com todo o respeito”, o filme não possui maiores pretensões, além de ser uma boa comédia. E existe coisa melhor que assistir a uma boa comédia? Ou tomar um bom champanhe? Ou, quem sabe, os dois? Fica aí a sugestão.

As cartas de Iwo Jima

As cartas de Iwo Jima (2006)



Branca Machado – 28/02/2007

O filme “A conquista da Honra” conta a história de soldados americanos já de volta da guerra perseguidos por lembranças do campo de batalha. “As cartas de Iwo Jima” conta a história de soldados japoneses durante a guerra com lembranças recorrentes da vida fora dela (civil). O segundo funciona mais que o primeiro, mas ambos servem para mostrar que os sentimentos humanos são muito mais parecidos do que pensamos mesmo estando em lados inimigos. Os filmes tratam da mesma batalha travada na ilha japonesa de Iwo Jima entre americanos e japoneses no final da Segunda Guerra Mundial. Ambos são dirigidos por Clint Eastwood que teve a idéia inédita de filmar a mesma guerra vista pelos dois lados dela. Os filmes são duros. Quase não possuem cor. Tratam da guerra e ponto.

“As Cartas...” ainda é mais cru, pois o ambiente é o da ilha, sem mulheres e crianças, sem conforto, sem esperança de sobrevivência. O general japonês Tadamichi Kuribayashi representado pelo excelente Ken Watanabe sabe que sua missão é prolongar a sua derrota o máximo possível. Sabendo-a perdida, ele se prepara para esta batalha com toda a dedicação e perseverança próprias do povo japonês para quem uma morte altruísta é bem mais significativa que uma vida sem honra. Desta forma, ele comanda a construção de túneis, onde a tropa japonesa, em menor quantidade que a americana, poderia ganhar grande vantagem estratégica.

Naquele tempo na ilha, Kuribayashi e outros soldados japoneses escrevem cartas para suas mães, esposas, filhos, etc que transmitem sentimentos universais. Com certeza, aquelas aflições, conflitos, sentimentos e saudade externados nas cartas são os mesmos dos soldados americanos.

Muito bem filmado com técnicas de montagem e som impecáveis, o filme não nos dá uma trégua. Durante ele, algumas vezes, queremos que os tiros parem. Também não se procura achar o lado certo. Até mesmo porque sabemos qual o lado certo neste caso. Mas, individualizando esta batalha, apresentando os soldados da forma que apresenta, o diretor nos faz pensar: Para quê, afinal, serve uma guerra se todos sonham a mesma coisa?

Em sua imagem final, Eastwood talvez queira nos dizer que o sol é para todos. E se põe naquela ilha como se põe no Ceará ou na Califórnia. E vai continuar se pondo, independente das mortes e da ignorância dos homens. Um sábio astro, este sol. Só de nascer indiferente à raça, cor ou crença nos dá uma lição e tanto.

O Ilusionista

O Ilusionista



Branca Moura Machado



Não deixa de ser uma ironia um filme cujo tema é a ilusão. Que conta a história de um profissional que vive de dar um show em que ilude a platéia. Ora, não é isso também que faz o cinema? “Engana” os que querem ser enganados com um tratamento técnico das imagens? Truques para os olhos, ilusões de ótica, tramóias mecânicas, habilidades artísticas, “O ilusionista” trata destes temas ao mostrar a história de um homem, Eisenheim (Edward Norton), que ganha a vida dando shows de mágica, mas que, como qualquer outro, também ama uma mulher, Sophie (Jessica Biel). Ocorre que Sophie é a noiva do príncipe Leopold (Rufus Sewell). Um sujeito totalmente cético e racional e que, por isso, logo de imediato, implica com o mágico. Temos então, além do conflito amoroso, uma disputa entre o real e o que se faz real. Em um certo momento do filme, o príncipe pergunta à noiva: “Ele tenta enganá-la. Eu tento iluminá-la. Qual o melhor?”. Trata-se da batalha da razão contra a ilusão, do monarca contra o mágico e entre eles, um amor de juventude.

A cena que sintetiza esta batalha com maestria é aquela na qual o príncipe desafia o ilusionista, incitando-o a fazer sua apresentação sem nenhum artifício: “Quero seu show sem bugigangas!”. Mas, na verdade, através do truque apresentado, o desafio volta-se contra o príncipe. Eisenheim usa a própria espada de Leopold bem como a lenda de Excalibur para desafiar a honra do príncipe herdeiro. A tensão neste momento é latente. E ficamos aflitos como aquela platéia deve estar. O mágico provocou e criou um rival. E a trama por trás da trama do filme começa a ser desenhada.

A partir dali, o príncipe delega a um inspetor de polícia Uhl (Paul Giamatti) a missão de desmascarar a verdade por trás do trabalho do mágico. Eisenheim chega a ser preso por fraude. Mas qual é a fraude se ele se auto intitula “o ilusionista?” Em filmes tão diferentes como este e “Na captura dos Friedmans”, este tema é polêmico e relevante. Até onde a polícia pode forçar os fatos? Há uma diferença grande entre o que a polícia quer que seja e o que realmente é. Neste filme, ela prende um mágico (!) por fraude. No outro que, por ser um documentário, sua atitude ainda é mais grave, ela praticamente força os depoimentos de crianças para conseguir as provas de uma acusação. Os fatos, nestes momentos, são irrelevantes, num verdadeiro uso da máxima de Maquiavel “O príncipe não hesitará em recorrer ao crime se for necessário”. Mesmo numa ficção, na qual a premissa principal não trata do assunto, incomodou-me o uso da polícia para satisfazer a um interesse particular.

As pessoas ávidas por explicações talvez não gostem da falta de esclarecimento sobre os truques, mas não acho que, no filme, isso seja necessário Não sei bem se o verbo é enganar, uma ilusão pode ser criativa, pode abrir sua mente e pode iluminar bem mais que uma verdade cruel. No “Ilusionista”, o truque vem mesmo como uma salvação.

O cinema, como o mágico, também nos dá o prazer do deslumbramento. O maior truque do cinema é juntar arte, entretenimento, história e crítica social em um discurso imagético. No filme, “o maior truque do mágico traz uma grande contribuição para a sociedade”. O maior truque do cinema também.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Mais Estranho que a Ficção

Mais Estranho que a Ficção (2006)




Branca Machado



Em “A Dona da História”, Carolina encontra ela mesma 30 anos antes. E ela, mais jovem, não gosta do que vê 30 anos depois. Elas conversam, discutem e a mais nova decide: “Eu vou mudar a minha história!” Então, a mais velha avisa: “Veja lá o que você vai fazer!” E a jovem responde: “Veja lá como você vai contar!”. É engraçado pensar na nossa vida no papel de leitores ou espectadores. Se estivéssemos nos assistindo seríamos interessantes? Se tivéssemos a chance de mudar alguma coisa, o que faríamos? O filme “Mais estranho que a ficção” também fala sobre isso. Só que, no caso, Harold Crick (Will Ferrel) é confrontado com uma voz feminina que narra todas as suas ações e advinha suas manias e pensamentos mais íntimos. Esta voz é de Kay Eiffel (Emma Thompson), uma escritora que, no momento, escreve um livro sobre Harold, sem saber que ele existe e que o que ela escreve acontece com ele. Um filme sobre ficção e realidade confrontadas. E sobre como tudo na vida pode virar uma boa estória. Basta saber contar.

Dependendo exatamente do modo de contar e, aí, voltamos à preocupação de Carolina, a história pode ser uma comédia ou uma tragédia. O problema nesta trama é que Kay é famosa por escrever tragédias. E, como ela diz “É da natureza da tragédia: os heróis morrem, a história vive”. Desta forma, Harold está encrencado e, quando ouve a voz que narra sua vida citando sua morte iminente, vai procurar saber quem a está escrevendo para mudar seu fim. Para isso, ele procura o professor Jules Hilbert (Dustin Hoffman), especializado em Literatura.

Jules prepara um questionário sobre a vida e manias de Harold para descobrir em qual estilo de literatura essa trama se encaixa. E a cena deste interrogatório é hilária. Para se ter uma idéia, quando Harold contesta certas perguntas estranhas, Jules comenta: “Só com essas, já eliminamos metade da literatura grega, dez contos de fada e, afinal, você não está aliviado por não ser um golem?”. Jules representa a ironia dramática desta história. A certa altura, ele mesmo comenta: “Ah! Ironia dramática! O terror de todo o personagem...”.

A metalinguagem está presente em todo o filme. A trama do livro é a história do filme, mas a história do livro dentro do filme também é a história do filme. Parece confuso, mas o filme trabalha todos esses aspectos com clareza e precisão. O diretor Marc Forster filma como Kay escreve: Descrevendo momentos cotidianos de forma poética. No fundo, trata-se de um drama com momentos de humor sutis tais como quando Harold afirma: “Eu não tenho esquizofrenia. Eu só tenho uma voz falando na minha cabeça...!”.

Mais estranho que a ficção realiza uma reflexão sobre a vida e sobre o que fazemos dela. Em um momento de desespero, Harold pergunta a Jules o que fazer e este sugere várias coisas, entre elas, ir comer panquecas. Harold, então, pergunta: “Mas quem é que vai preferir comer panquecas a lutar pela sua vida?” E Jules responde: “Tudo depende do tipo de vida que está sendo vivida e da qualidade da panqueca”. A verdade é que a vida é agora. Ela está aí. E deve sempre valer mais a pena que a melhor das panquecas.

A Última Noite

A Última Noite (2006)




Branca Machado – 18/12/2006





Para quem gosta de boa música country, folk e tem saudade das antigas salas de teatro, de cinema, dos shows ao vivo de rádio e das radio-novelas, o filme “A Última Noite” é um programa obrigatório. Apesar de um certo clima nostálgico, o filme nos proporciona um grande prazer ao resgatar o clima da transmissão de um programa de rádio ao vivo gravado em um antigo teatro.

Esta coluna também é uma homenagem ao diretor Robert Altman. Sempre contraventor, ele realizou pequenas obras-primas como “O jogador”, “Short Cuts” e “Assassinato em Gosford Park”. Em “A última noite”, ele fala sobre o fim das coisas. Em Belo Horizonte, vivemos o fim de algumas salas como as do Cine Metrópole, Nazaré, Palladium, entre outros. No filme, o velho prédio do teatro Fitzgerald será demolido para virar um estacionamento. E, com ele, também termina o show de rádio que é transmitido ali há mais de 30 anos aos sábados. Naquela noite, acontecerá a última transmissão do "A Prairie Home Companion". Acompanhado por milhões de pessoas, o programa inclui apresentações ao vivo de bandas e cantores, comerciais e anedotas. Como afirma um dos ouvintes, os participantes daquele show já se tornaram seus amigos e aquele será o fim de uma grande amizade. Mas, em seu último show, mesmo pesarosos, aqueles artistas farão daquele “limão, uma limonada”.

O apresentador G.K. (Garrison Keillor) não quer falar de despedidas, nem de assuntos ruins, e sim fazer um show alegre para todos se lembrarem. Esta posição dele é bem salientada em uma discussão que ele tem com Lola (Lindsay Lohan) sobre sua decisão de não mencionar a morte de um colega durante a transmissão. Lola lhe pergunta: “Você não quer que se lembrem de você depois de sua morte?” E ele responde: “Eu não quero que mandem se lembrar de mim”. Este é o mesmo sentimento que ele tem com relação ao programa: que ele seja naturalmente lembrado. Sem maiores dramas.

Altman é fiel ao seu estilo: pessoas falando ao mesmo tempo, um certo ar de improviso. Há cenas maravilhosas como o movimento de câmera que ele realiza do camarim ao palco, de baixo para cima, sem cortes. Neste momento, o teatro é apresentado para gente, passamos a ter carinho por ele. Ou, quando Tomy Lee Jones, o interventor, responsável pela demolição do teatro, assiste ao show sozinho no camarote e sua imagem se funde com as “Jackson Girls” (Meryl Streep e Lily Tomlin) no palco cantando a música em homenagem à mãe. Ele se emociona e também nos emocionamos: Será que se deve acabar com isso mesmo? Altman insere uma reflexão sem usar palavras em nenhum momento.

A trilha sonora é perfeita para o filme. Acompanha o enredo e transmite as subtramas e relacionamentos entre os artistas através das letras da música e interpretação do cantor, o que é muito apropriado num filme sobre um programa de rádio. O diretor contou com um elenco de primeira e só para citar alguns, temos Meryl Streep, Woody Harrelsson, John C. reilly e Kevin Kline. Penso que Altman ainda aproveita para dar sua habitual alfinetada em Hollywood através da seguinte música: “Por que trabalhamos tanto para conseguir algo que nem queremos?”.

O filme praticamente se passa no teatro. E o velho prédio tornou-se personagem com toda sua arquitetura e histórias de corredores que vão deixar saudade. Sentimo-nos com relação ao teatro como Carlos Drumond de Andrade ao escrever sobre o fim do cine Odeon: “Não amadureci ainda bastante para aceitar a morte das coisas, que minhas coisas são, sendo de outrem, e até aplaudi-la, quando for o caso. (amadurecerei um dia?)”.

Robert Altman, em seu último filme, fala sobre a última apresentação de um programa de rádio que não se faz mais. Será uma coincidência? Mas não deixa de ser uma grande metáfora. Suas obras, verdadeiros filmes de autor, em que ele deixa sua marca, não serão mais realizadas. Mas também aqui façamos deste limão, uma limonada e vamos lembrar de Altman naturalmente com o prazer de assistir à sua obra única.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O que você faria?

O que você faria? (2006)


Branca Moura Machado



“Até onde você chegaria para ser o escolhido?” Esta é a frase que encerra o trailer de “O que você faria?”. Ao sairmos do filme, chegamos à conclusão de que aqueles personagens foram longe demais. Ele é mais um exemplo em que percebemos que “de todos os inimigos da humanidade, que até hoje já surgiram, o maior deles é sem dúvida o próprio homem”.

Sete candidatos, escolhidos por seus currículos, participam da última etapa de seleção para um cargo importante em uma multinacional. A partir daí, eles são submetidos a várias tarefas; em cada uma delas, um deles será eliminado. E o nível de humilhação a que se submetem em cada atividade realizada vai deteriorando o estado de espírito dos que ficam.

No início do filme, o diretor Marcelo Piñeyro realiza um eficiente uso de telas divididas que mostram diversas ações concomitantes, reduzindo o tempo gasto na introdução da história. Ele mostra, inclusive, que, naquele dia, haverá uma manifestação contra a globalização na cidade.

Durante todo o tempo, escutamos os clichês deste tipo de seleção: “Parabéns por terem chegado até aqui!”; “Só por estarem aqui, vocês são vencedores!”; “Entraremos em contato”. Nosso consolo é perceber que isso é universal. Mas, ao mesmo tempo, entristece-me pensar que não existe uma maneira mais justa e menos competitiva de se entrar no mercado de trabalho. Pelo menos, nas grandes corporações. A cultura, desde o processo de seleção, é de literalmente atropelar o outro.

O diretor realiza muitos closes, planos e contraplanos, procurando criar o embate psicológico e real tensão em torno daquela mesa. Quem já jogou “assassino” vai se identificar com a primeira tarefa da seleção do filme. Nela, os sete candidatos devem adivinhar quem entre eles é um funcionário da empresa infiltrado. O mesmo clima de desconfiança ao se olhar nos olhos ao redor da mesa e não saber se aquele é o assassino que vai te tirar do jogo é o que toma conta dos personagens a partir dali. Essa desconfiança, acompanhada de acusações, infligidas na primeira tarefa, vão permear todo o processo de seleção e evoluir a limites degradantes.

O filme carrega nos diálogos, já que é baseado numa peça teatral. Talvez, a adaptação para o cinema pudesse ter diminuído o textual e usado mais a linguagem cinematográfica. Em contraponto, as interpretações são perfeitas. Reconhecemos aqueles tipos, sentimos a tensão latente e a deterioração psicológica de cada um deles.

Ao final, acompanhamos um dos candidatos sair do prédio, após sua eliminação. Por causa da manifestação, a rua está destruída, suja, cinzenta; os carros, quebrados ... A rua é uma metáfora de seu estado de espírito. Não só seu como também de todos os outros que já saíram. E, talvez, também seja o estado em que se encontra o escolhido. Quem sabe, ele concorde com a clássica afirmação de Pirro, após sua famosa batalha: “Outra vitória como essa e estaremos perdidos!”?

Pequena Miss Sunshine

Pequena Miss Sunshine (2006)


Branca Moura Machado



“Pequena Miss Sunshine” pode parecer uma comédia. E,como comédia, é muito engraçado. Mas o filme vai além: comovente e sensível, ele mexe com emoções diferentes.

No início, os personagens se reúnem para jantar. Esta cena serve como preparação para a longa jornada da família ao concurso da Miss Sunshine. As motivações daqueles personagens e um pouco da história de cada um se revelam ali. Suas relações são estabelecidas através de diálogos triviais. O pai, Richard (Greg Kinnear), após saber que Olive (Abigail Breslin), sua filha de 07 anos, participará do concurso, deixa claro para ela que há dois tipos de pessoas no mundo: os vencedores e os perdedores. Descobrimos que Olive ensaia exaustivamente com seu avô (Alan Arkin) um número para apresentar no concurso. Na mesa, há o deprimido Tio Frank (Steve Carell), especialista em Proust. O embate entre ele e Richard esclarece como um deles é profundo e o outro é raso, mas como os dois são carregados de boas intenções. Dwayne (Paul Dano), o irmão, é o típico adolescente às voltas com suas revoltas. Finalmente, temos a mãe Sheryl (Toni Collette) que agrega essas personalidades díspares em um ambiente familiar, procurando fazer daquelas relações, as mais amenas possíveis.

A partir deste jantar, aquela família está próxima da gente. Somos parte dela. E vamos viajar juntos. A viagem é repleta de descobertas, decepções e mudanças para os personagens, que reveem seus conceitos e objetivos de vida.

Há enquadramentos diferentes e significativos. A cena de Dwayne, em primeiro plano, sentado na grama, e a família, ao fundo, junto à Kombi é fantástica. Nós somos o Dwayne, temos a consciência de que “nossa” família está ali nos observando. O diretor usa a profundidade de campo para sentirmos a pressão sobre Dwayne.

O filme resgata valores como a importância da infância, da família, da vontade. Ele nos faz repensar a vida e perceber que “todo ser humano faz diferença na vida de outros”. Em um certo momento, o avô diz a Olive que “o verdadeiro perdedor é aquele que tem tanto medo que nem tenta!”. E uma coisa é certa: Aquela família tenta. Dwayne resume essa filosofia ao refletir que “a vida é um concurso de beleza atrás do outro. Danem-se todos eles! Se eu quero voar, eu vou achar meu jeito de voar!”.

Quando percebem a ditadura da beleza e do sucesso a qualquer preço imposta a garotas de 07 anos, Dwayne e Richard não querem mais que Olive participe do concurso. Mas Sheryl afirma que eles devem deixar “Olive ser Olive!”. Todo o filme é sobre isso: ser você simplesmente e não seguir a um padrão pré-determinado. Olive é uma criança que não sabe que há o feio e o bonito, que há o gordo e o magro. Enfim, sem convenções. Deveria continuar assim.