domingo, 31 de dezembro de 2023

Oppenheimer



 Em certo momento do filme Oppenheimer, o físico traduz o seguinte trecho do sânscrito: “E agora me tornei a morte. A destruidora de mundos.”. Em outro, alguém comenta: “A bomba não foi o último ato da segunda guerra, mas o primeiro da guerra fria.”.

O filme sobre o pai da bomba atômica nos envolve de forma eficiente numa narrativa sobre o cientista que amava a física quântica e queria, acima de tudo, revolucioná-la. E que, ao perceber o que ele podia ter desencadeado, militou a favor do controle da corrida armamentista na Guerra Fria e acabou sendo acusado de espião soviético na era McCarthy.

Acompanhamos toda esta trajetória no longa. E concluímos que a bomba atômica acabaria surgindo de um lado ou do outro da Guerra; que o homem por trás dela era genial e obstinado, mas não era o proprietário daquela arma; e que, principalmente, não previu todas as consequências de sua invenção que, ao final, resultaram em mundiais e definitivas.

Oppenheimer (Cillian Murphy) era uma figura polêmica, Coronel Groover (Matt Damon), ao convidá-lo para dirigir o projeto atômico, descreve: “Você é diletante, mulherengo, suspeito de comunismo, teatral, neurótico”. E o cientista pergunta: “E genial?”. O coronel comenta: “Genialidade é comum no seu meio”. O que não era tão comum era um contraponto ético em um meio tão científico e teórico. Nesta indefinição ética, o físico ouvia coisas como: “A Guerra não acabará. Os japoneses não desistirão. A bomba salvará vidas.”. Fato é que o físico ficou à frente de um projeto no qual foram investidos 2 bilhões de dólares, 4.000 pessoas, 3 anos de dedicação, muita expectativa e pressão.

O filme é entremeado de flashbacks, enquanto acompanhamos o depoimento do físico à audiência de Segurança da Comissão de Energia Atômica dos EUA em 1954 e também o de Strauss (Robert Downey Jr.) ao senado americano algum tempo depois. A partir destes depoimentos, montamos a narrativa e o contexto por trás da invenção da bomba. Em uma palestra pré Segunda Guerra, vemos o físico dinamarquês Niels Bohr comentar: “Física Quântica não é um passo à frente. É uma nova maneira de entender a realidade. E nem todos aceitam.”. A física radical de Oppenheimer era abstrata, controversa, revolucionária e surgiu em um momento definitivo da história mundial.

No livro que deu origem ao filme, “Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano” de Bird, Kai, compara-se o cientista ao mito Prometeu que roubou o fogo dos Deuses e o entregou à humanidade. Prometeu foi seriamente castigado. Oppenheimer também. Ao experimentar a prática, humanizou-se e isto tornou sua vida bem mais difícil e conflituosa. E, no fundo, a de todos nós. 


domingo, 3 de dezembro de 2023

Tia Virgínia


Tia Virgínia estreou no 51º Festival de Gramado com uma trajetória de destaque: a sessão foi a mais aplaudida da edição e, algumas vezes, o público parou para aplaudir uma cena. O filme levou 5 prêmios, incluindo Melhor Roteiro e Melhor Atriz. 

O filme começa com Virgínia (Vera Holtz) dando corda em um relógio e acertando meticulosamente seus ponteiros hora por hora. É este tempo do relógio, que ela acerta, que vamos acompanhar no desenrolar de um dia dentro da casa em que ela vive com a mãe inválida. 

É dia 24 de dezembro e ela aguarda as irmãs que moram fora e estão vindo para a ceia de Natal. A cuidadora não foi trabalhar e Virgínia inicia a árdua rotina de cuidados com a mãe, enquanto espera, com certa ansiedade, o restante da família chegar. A rotina da casa parece ser bem parecida todos dos dias. E, nós, como espectadores, não saímos dela. Ficamos ali o tempo todo.

Com a chegada das irmãs e de dois sobrinhos, todos os personagens passam a conviver e trocar informações com as quais a gente monta uma dinâmica familiar que revela focos de tensões entre os personagens. Como em praticamente todas as famílias, o encontro de Natal não é assim um momento tão acolhedor como, a princípio, pareceria ser.

Logo que chega, Valquíria (Louise Cardoso) elogia a forma como a irmã cuida da casa. Mas, 10 minutos depois, ela troca os móveis de lugar, sem nem consultar Virgínia, que, afinal, mora ali. Vanda (Arlete Salles), ao entrar, começa a lembrar-se do pai e a ficar emotiva, mas logo é confrontada com o fato de que não compareceu ao seu enterro. São cobranças guardadas, ressentimentos antigos, que, naquele ambiente nostálgico, e, de certo modo, claustrofóbico por carregar tantas lembranças, encontram um ambiente fértil para aflorarem.

Em muitos momentos, identificamos algumas situações com nossa própria família e chegamos a achar graça. Mas, no fundo, incomodamo-nos com a manipulação em cima de Virgínia que, em tese, deve se sentir grata por morar naquela casa de graça e cuidar da mãe. As irmãs chegam a questionar os gastos; os quais têm achado muito altos.  

O filme surpreende com seu desfecho, de muitas formas, libertador e revolucionário. E nós saímos com a sensação de que temos que olhar mais de perto para as "Tias Virgínias" de nossa família. Elas possuem aspirações e interesses que não devem ser negligenciados. 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Air: A História por trás da logo

 


O filme Air: a história por trás do logo conta uma história de sucesso de posicionamento de marca e estratégia. É curioso porque conhecemos tanto a marca, quanto o nome por trás dela, mas poucos conhecem a história que o filme narra. E, para os cinéfilos, traz uma atração especial, já que temos Ben Affleck e Matt Damon na produção. Os amigos, que estrearam juntos em Gênio Indomável, venceram o Oscar 1997 de roteiro original pelo filme. É gratificante vê-los juntos. A sintonia transparece em cena. Além deles, no elenco, estão Viola Davis, Jason Bateman, Marlon Wayans, Chris Messina e Chris Tucker.

Dirigido por Ben Affleck, Air conta a história real de como Sonny Vaccaro (Matt Damon), olheiro da Nike nos campeonatos regionais de basquete, prospectam o novato Michael Jordan e criam uma parceria que revoluciona o mundo dos esportes e do marketing esportivo.

Em 1984, a Nike era a marca campeã em vendas de tênis de corridas, mas, no basquete, estava em 3º lugar (54% de participação era da Converse; 29%, da Adidas e 17%, da Nike). O setor da empresa dedicado ao esporte estava a ponto de ser desligado e tinha um orçamento bem limitado para prospecção de jogadores que promovessem a marca no basquete. Naquele ano, eles tinham U$ 250.000 para investir em 3 atletas. E Jordan estava sendo sondado pelas três principais marcas do mercado.

Sonny viu algo no jogador e resolveu que seria ele ou... ele. Assim, propôs que aquele orçamento para 3 atletas fosse oferecido apenas ao Michael. E se comprometeu a conseguir o jogador para a Nike. É esta estratégia de Sonny e, em um segundo momento da Nike, para atrair o jogador, que acompanhamos no filme.

Para quem gosta de uma boa história, o filme entretém e cria interesse. Para quem gosta de casos de marketing de sucesso, o filme ensina e demonstra que o risco sempre faz parte de uma grande jogada. Para uma empresa, fica a lição de que inovação é bem mais que tecnologia. Inovar é também ousar pedir uma cláusula inédita em um contrato. Inovar é mudar de estratégia. Inovar, ao invés de automatizar, pode individualizar.

Não à toa, o slogan da Nike objetiva transmitir a ideia de não importa quem você é ou quais são seus objetivos, “basta tomar uma atitude e apenas faça (just do it)”. A Nike terminou aquele ano com U$162 milhões de vendas no tênis da marca Air Jordan e recentemente a média é de U$ 4 bilhões em vendas anuais.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Assista-me: Elis & Tom, Só tinha que ser com você

 

“Elis & Tom, só tinha que ser você” é um documentário em cartaz nos cinemas sobre os bastidores da gravação do disco lançado em 1974 por Antônio Carlos Jobim e Elis Regina pela gravadora Polygram.  As gravações foram realizadas entre 22 de fevereiro e 9 de março do mesmo ano no MGM Studios de Los Angeles, Califórnia. O disco marcou o encontro de dois dos maiores nomes da música popular brasileira.

Anos antes, a cantora havia afirmado a Ronaldo Bôscoli, produtor musical e seu futuro marido: “Essa sua Bossa Nova, esse negócio de cantar para dentro, para depois sair um fiapo de voz - não é comigo não. Eu canto para fora!”. Justamente a Bossa Nova, estilo eternizado por Tom Jobim. Os dois acabaram unindo os estilos nesta gravação, em que a cantora está mais contida e doce. Nele, quem diria, Elis interpreta diversos clássicos do gênero, como "Águas de Março" (que se tornou o maior sucesso do disco), "Corcovado", "Inútil Paisagem", às vezes em dueto com Jobim, que em outros momentos apenas a acompanha no violão ou piano.

O disco foi um sucesso de vendas e de crítica e segue sendo aclamado por músicos e críticos no mundo inteiro. Assim, quase 50 anos depois de seu lançamento, um documentário sobre os bastidores desta produção acaba se ser lançado. Produzido por Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, o documentário, além das cenas das gravações na época, conta com depoimentos de César Camargo Mariano, André Midani, Roberto Menescal, Nelson Motta, João Marcelo Bôscoli e Elizabeth Jobim.

Roberto de Oliveira, que era empresário de Elis Regina em 74, participou da gravação um álbum conjunto em Los Angeles. Sobre o momento, ele comenta: "Chegando lá eu percebi que eu tinha que filmar aquilo. Percebi que eu estava diante de um evento histórico." O filme passou por um tratamento de imagem e foi lançado em 4K. Com a ajuda de inteligência artificial, o diretor contou que foi possível deixar o áudio o mais limpo e claro.

É sempre bom rever e reencontrar artistas como Elis e Tom Jobim. Melhor ainda é ouvi-los e vê-los em plena ação. Aproveitei e levei a Manuela, minha filha, para assistir ao documentário comigo. Numa época acelerada de produções superficiais para redes sociais e cantores instantâneos, é sempre interessante presenciar o processo de dedicação e o esmero numa produção. Além, claro, conhecer estas canções e estilo, que devem e precisam ser relembrados e reverenciados.  

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Triângulo da Tristeza


Triângulo da Tristeza não é um filme fácil. Carregado de uma crítica ácida ao mundo dos super-ricos, ele também traz uma reflexão sobre a inversão de poderes. Se por acaso os papeis se invertessem, aqueles que se tornariam os novos super-ricos, agiriam de forma muito diferente? A resposta não é simples, como o filme também não.

Dirigido pelo diretor sueco Ruben Östlund, Triângulo da Tristeza foi o vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes 2022. A obra tem relação com filme anterior do cineasta, "The Square - A arte da discórdia", que fazia uma crítica ao mundo das artes plásticas e ganhou a Palma de Ouro em 2017.

O filme se inicia em um casting para modelos masculinos. De lá, o diretor já começa a pontuar alguns temas ácidos sobre grandes marcas e seus aspectos segregadores: “Esta marca é simpática ou zangada? A marca zangada despreza seus consumidores.” “Ser bonito e desfilar. Você é capaz de fazer os dois ao mesmo tempo?”.

Neste primeiro momento, somos apresentados a Carl (Harris Dickinson), que é um dos modelos que está nesta seleção, e Yaya (Charlbi Dean), modelo de sucesso e namorada de Carl. O casal de jovens modelos influencers está presente nas três partes nas quais o filme é divido. A trajetória deles e sua relação um tanto superficial e, até mesmo, comercial é aquela com a qual mais conseguimos nos envolver ao longo da trama. O restante dos personagens tem um peso mais simbólico, representando super-ricos exóticos e cheios de vontade e aqueles que os servem em todos seus caprichos.

Depois que somos apresentados ao casal, a história os acompanha em um cruzeiro de luxo. No navio, acompanhamos plenamente a hierarquia social envolvida naquela viagem. Em seus vários andares, há os passageiros; a tripulação que os atende diretamente, formada por jovens atraentes; e os trabalhadores, na maioria asiáticos, que limpam e cozinham.

Não à toa, o título do filme refere-se a um termo usado por cirurgiões plásticos para a ruga de preocupação que se forma entre as sobrancelhas, que pode ser corrigida com botox em 15 minutos. No mundo dos super-ricos, não há lugar para a preocupação. Esta é a filosofia presente no navio.  

Somos introduzidos ao cruzeiro, quando uma maleta amarela, cheia de Nutella, é jogada em alto-mar, para que um tripulante a busque e a traga para o navio. Algum passageiro pediu o produto que, como não estava disponível a bordo, foi prontamente providenciado. A dinâmica do cruzeiro é esta: pediu, foi atendido. Desejou, é realizado. Para eles, nada é impossível e, com cada vontade atendida, os super-ricos tornam-se cada vez mais alienados. Aquele navio os isola em um mundo onde só ouvem “Yes, Sir” ou “yes ma'am”.

Como escreve a psicanalista Marília Velano no texto “As pontas afiadas do Triângulo da Tristeza”, o mesmo tipo de ambiente está presente na sério White Lotus (HBO, 2021) e, de forma mais discreta, no filme Parasita (2019): “O resort no primeiro caso, e o quarto da empregada no segundo. Além disso, as duas obras e o filme guardam em comum a crítica ao mundo do super ricos e seus lugares que, de tão vexatórios, parecem irreais, não fosse a porta concreta que delimita o dentro e o fora de cada um.”

Mas este é um mundo frágil e comercial como a relação de Yaya e Carl. A inversão desta dinâmica acontece na terceira parte do filme. E a pergunta que nos fazemos é “Será que ficou melhor?”. Para ficar melhor, não se deveria querer ficar no lugar do outro, mas encontrar um lugar comum. Espaço este que, neste mundo distópico que o filme nos apresenta, ainda não foi possível encontrar. 

domingo, 6 de agosto de 2023

O Beco do Pesadelo

 Na coluna deste mês, volto a comentar um filme de Guilherme de Del Toro. Desta vez, é O Beco do Pesadelo, lançado em 2021, mas ao qual assisti recentemente. A produção recebeu quatro indicações ao Oscar 2022 - melhor filme, melhor fotografia, melhor figurino e melhor direção de arte - e, além do diretor, que já é uma qualidade por si só, ainda tem um elenco composto por nomes como Cate Blanchett, Willem Dafoe, Toni Collette, Bradley Cooper, Rooney Mara, entre outros.

A versão de Del Toro é a segunda adaptação para o cinema do livro Nightmare Alley, de William Lindsay Gresham, originalmente publicado em 1946. Sua primeira versão cinematográfica foi O Beco das Almas Perdidas (1947), dirigido por Edmund Goulding.

Beco do Pesadelo tem estilo noir, com cenas noturnas, escuras, sombras, a femme fatale, personagens misteriosos, um protagonista ambíguo e o caráter simbólico da narrativa; ele já se inicia com uma profecia. Quando o protagonista Stanton Carlisle (Bradley Cooper) é acordado no ponto final de uma viagem, escuta: “Última parada. Fim de linha.”

Ele, então, chega em uma feira decadente cujas atrações principais são desajustados: mulher que leva descargas elétricas, videntes, o menor homem do mundo e o geek, que não se sabe se é um homem ou um bicho. Em suma, aquele que quase perde sua essência humana e se porta como um animal. Uma saga não tão incomum, como, a princípio, podemos pensar. Sobre tais shows, Clem (Willem Dafoe),  gerente da feira, explica: “As pessoas pagam muito dinheiro para se sentirem bem consigo mesmas”. Ao verem o grotesco, se sentem melhor.

No caso de Zeena (Toni Collette), a vidente, seus truques funcionam bem porque as pessoas são desesperadas para serem vistas. E é nesta atração que Stan achará uma oportunidade de fazer sucesso. Toma Pete (David Strathairn), marido de Zeena, como seu mestre e aprende a “ver” as pessoas. Ou melhor, aprende a ler o desespero delas. Torna-se um sucesso. Com isto, mais ambicioso e ousado. E, neste caminho, conhece Lilith (Cate Blanchett), uma psicóloga que segundo ele “é mais discreta, mas é trambiqueira igual a mim”. A dinâmica entre os dois é interessante, desafiadora, ficamos interessados em saber o que resultará daquela parceria. Como comenta Kevin Rick no site Plano Crítico, "Lilith Ritter é provavelmente a melhor personagem em termos de conflito narrativo com Stan, trazendo uma leve camada de psicanálise ao já intrigante estudo de personagem do protagonista sob a ótica da natureza humana, principalmente ambição e sucesso”.

Não à toa, em uma de suas lições a Stan, Pete enfatiza: “Se o homem insiste na mentira e começa a sentir que tem poder com ela, ele fica cego. E passa a acreditar na própria mentira.” O tema é atual por se tratar praticamente do conceito da pós-verdade. No filme, é literal. Não se deve trabalhar com a mentira. Stan foi alertado, mas se cegou e é aí que seu ciclo se fecha tragicamente de volta a sua última parada. Não foi por falta de aviso. 

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Sementes Podres


Na segunda visita que realizei à Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) feminina em Belo Horizonte no mês de junho, as recuperandas estavam em aula e assistiam ao filme Sementes Podres por meio de um projetor que havia sido recentemente doado à Associação por nosso representante de Cidadania Fiscal, Sérgio Mascarenhas. Por diversos motivos, fiquei muito tocada com aquele momento. Mas, especialmente, por saber que, agora, filmes entrarão naquelas salas. Fiquei também curiosa para descobrir por que o professor havia selecionado aquela produção para uma aula. Então, assisti e entendi tudo.

O filme é uma produção da Netflix de 2017, dirigido por por Kheiron e protagonizado por ele e Catherine Deneuve. Ele conta a história de Wael (Kheiron), de origem iraniana e atormentado por um passado sofrido, que se tornou um trapaceiro de pequenos golpes realizados com sua mãe adotiva Monique (Deneuve). Ao longo da história, Wael, por meio de Monique, passará a ser mentor de um grupo de estudantes com dificuldades.

Logo no início, uma legenda na tela preta cita Victor Hugo "Não há ervas daninhas, nem homens, nem mulheres. Há sim, maus cultivadores". De imediato, lembrei-me da frase que seria, segundo o próprio coordenador, a mais importante da Apac: "Aqui entra a mulher, o delito fica lá fora”. Talvez, por isto, a palavra recuperanda seja a melhor para descrever aquelas pessoas que cumprem pena ali. A Apac busca ser uma boa cultivadora e é muito gratificante saber que a Sexta Região está colaborando neste cultivo.

Wael perdeu sua família quando criança em um ataque na guerra entre muçulmanos e cristãos. Aprendeu a se virar muito pequeno. E o filme entremeia situações do seu passado com o presente, realizando ligações diretas sobre como um influenciou o outro. Wael aplica pequenos golpes. Monique explica para Vítor (André Dussolier): “Prefiro isto a vê-lo atrás das grades”.

De certa forma, é isto que Vítor almeja também, mas de um jeito certo. Ele é diretor de uma Associação de jovens e precisa urgentemente de um instrutor para alunos que foram expulsos de suas escolas. Monique oferece Wael. Vítor aceita e apresenta o desafio: “Eles só são obrigados a aparecer no primeiro dia. Você precisa fazê-los voltar”.

Antes de Wael começar, o diretor enfatiza: "Se se comportarem mal, lembre-se de que jovens problemáticos são jovens com problemas". Aquilo é real. Há um motivo por trás daquele comportamento que é muito mais que uma explicação fácil do "pau que nasce torto, nunca se endireita". Wael sabe disso. É um deles. E, ao longo da projeção, fica fácil entender por que ele acaba sendo bem-sucedido como instrutor daquele grupo.

Em determinado momento, Victor explica para Monique que “alunos são muito caros” e ela observa: “o mesmo vale para prisioneiros”. A questão é uma mudança de olhar. Sementes Podres traz diversas reflexões sobre raízes, conflitos, chances e formas de recuperação. Espero que ele tenha inspirado as alunas naquela sala de aula. Espero que ele inspire também novas chances e um novo olhar de pessoas sobre outras pessoas.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Pinóquio


Pinóquio, de Guilherme de Del Toro, vencedor do Oscar 2023 de animação, é um filme bem mais sombrio que a versão da Disney de 1940.

A assinatura do diretor está na história. Sabemos que é um filme dele. E isto é bom. Com a vitória neste ano, Del Toro se tornou a primeira pessoa a conquistar os prêmios de Melhor Animação, Melhor Direção e Melhor Filme na história do evento. As duas últimas condecorações vieram com o drama fantástico “A Forma da Água”.

Pinóquio, cuja história foi escrita pelo italiano Carlo Collodi em 1883, já teve diversas versões e o fato de o diretor ganhar o Oscar por mais uma delas engrandece, ainda mais, sua conquista.

A história originalmente era mais sombria. A versão popularizada pela Disney foi abrandada para um público mais infantil. A de Del Toro, não.

Nesta versão, vemos uma Itália violenta e cruel, permeada pela 2ª Guerra e o fascismo. Mussolini inclusive aparece no filme. Pinóquio não tem refresco e nunca se torna um menino de carne e osso; é sempre um boneco de madeira que fala.

E é por isto que chama a atenção: por ser um boneco que fala.  Para isto vai para o circo das excentricidades, juntar-se à mulher barbada e ao homem borracha.

É tratado como pária. Hostilizado por todos. Gepeto também é duro com ele,  ao mesmo que tem uma vida bem dura. Ele perde seu filho por causa da explosão de uma bomba durante a Guerra. E esculpe Pinóquio em um momento de muita dor. O boneco é mais que tudo uma expiação.

A animação em stop-motion inclui Pinóquio se juntando ao exército italiano juntamente com o filho de um alto militar fascista que fica exultante ao ver o menino se juntar aos militares. A crítica a momentos reais e não fabulares traz a história para uma reflexão bem concreta.

Não é a primeira vez que Del Toro aborda o assunto em suas obras. E,  sobre o fascismo, pontua: “É um tema que me preocupa porque é algo ao qual a humanidade parece sempre voltar.”. O diretor nos apresenta imagens belas, compostas de forma cuidadosa, com o contraponto de passar um alerta do que não pode ser esquecido. É uma fórmula que traz o encanto da imagem, do traçado; em contraste com a dureza do que é contado. Del Toro sabe trabalhar este contraste como poucos. Com ele, esta fórmula funciona muito bem. 

Sem Ursos

 


Sem Ursos é um filme iraniano de drama escrito, produzido e dirigido por Jafar Panahi. O diretor, que ganhou prêmios nos festivais de Veneza e Berlim, foi condenado a seis anos de cadeia, em 2010, por fazer propaganda contra o governo, mas conseguiu liberdade condicional. Ele foi também impedido de sair do país e proibido de dirigir filmes por vinte anos. Mesmo assim, Panahi já dirigiu filmes após a condenação. Sem Ursos é o mais recente.

É importante contextualizar a vida do diretor porque, no filme, ele praticamente faz papel dele mesmo. Assistimos a um cineasta, interpretado pelo próprio Panahi, dirigir um filme a distância por meio de videochamadas. O personagem se encontra em um vilarejo localizado na fronteira do Irã com a Turquia e está em um conflito: sem saber se atravessa e começa uma nova vida ou se fica no Irã, apesar de todas as adversidades. Conforme escreve o jornalista Marcelo Müller em sua coluna no site Papo de Cinema “Ora, um homem impedido pelas autoridades de sair do país flertando com a esperada subversão da sentença que lhe foi imposta naturalmente gera tensão.”

O vilarejo representa o que há de mais tradicional e arcaico no país. E, pelos dias vividos por Jafar ali, dá para perceber a opressão estrutural que esta tradição impõe. O diretor é o contraponto de todos aqueles costumes naquela pequena comunidade (ou será o contraponto de quase todo o país?). Pelas dificuldades que passa ali, sabemos que, por muitos motivos, seria mais fácil ele cruzar aquela fronteira. Mas, por algum motivo, ele segue tentando.

É a esta tentativa que assistimos de forma paralela: Tanto na rotina e convivência dele naquele vilarejo, quanto na trama que aparece no filme que ele insiste em terminar a distância. Ele é persistente. Para ser ele, é preciso ser.

Marcelo Müller comenta  “Desde que se tornou persona non grata pelo regime autoritário do Irã, o cineasta Jafar Panahi tem feito um cinema pautado por signos de resistência.” Sem Ursos é mais um destes signos. É um registro de dogmas religiosos, opressão e costumes que, para nós, nem seria mais possível existir. Ainda bem que temos Jafar para nos alertar. 


PS: Assisti ao filme Sem Ursos em uma das salas de Cinema do Centro Cultural Unimed-BH, localizado no Minas I e aberto ao público. O espaço é uma grata surpresa e uma boa dica para quem está em Belo Horizonte. Sala nova, pequena, imagem excelente. Perto da Praça Liberdade, a sala tem uma boa localização e um charmoso café. Além disso, conta com uma com Galeria de Arte, Biblioteca e Teatro.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Tár

 

A protagonista Lydia Tár (Cate Blanchet) está presente em todas as cenas do filme que, não à toa, leva seu nome. O longa é sobre ela em todas as suas qualidades e, principalmente, imperfeições. Apesar de que, a princípio, ela nos pareça, se não perfeita, quase. 

De imediato, somos apresentados à maestrina de maneira bem eficiente e completa, já que a conhecemos juntamente com a plateia que assiste a sua entrevista para um crítico da The New Yorker. A leitura de seu currículo pelo entrevistador já nos impressiona, mas, quando ela começa a responder às diversas perguntas que ele faz, percebemos, nos primeiros 15 minutos do filme, que estamos diante de uma artista genial. Uma maestrina como poucas. Passamos, assim, a observá-la de forma bem mais interessada. A cena nos apresenta a ela e ao seu próximo projeto ao qual vamos acompanhar ao longo da história. 

Ainda em Nova York, ela vai dar uma aula na Juilliard. Esta aula é bem interessante e fica ainda melhor, quando  afinal percebemos que, na verdade, Tár realiza uma autodefesa no que ainda está por vir na trama. A cena é filmada sem cortes. E aborda diversas reflexões e temas atuais. Quando Max, um aluno argumenta que não escuta Bach por causa do seu machismo, ela pergunta: “O que suas escolhas sexuais têm a ver com sua música? Se o talento de Bach pode ser reduzido a seu gênero, país de nascimento, entre outras coisas; o seu também pode, Max”. 

Tár volta para Berlim para ensaiar com a famosa filarmônica a qual rege. Assistimos, nos ensaios, à meticulosidade dela. Mas também presenciamos um grau de arrogância tão elevado que faz com que a pessoa considere que o certo e o errado não são mais para ela. Tár pode. O resto do mundo, não. Será? O mundo mudou e não basta ser apenas gênio é preciso ser outras coisas também. 

O filme mostra a trajetória inversa da narrativa clássica de uma heroína. Ele começa com a protagonista no auge de sua vida e carreira e mostra uma das possibilidades do que pode vir depois de um final feliz. A vida não termina no auge. Ela continua. E expõe falhas, defeitos, arrogância e conflitos. A vida cobra algumas contas também. É também oportunidade de um recomeço. A protagonista afirma em certo momento que o lar de um músico é o palco. Quem sabe em seu lar, Tár não conseguirá de alguma forma redescobrir aquilo que a conecta com o que tem de melhor? 

quarta-feira, 1 de março de 2023

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo

Em tudo em todo lugar ao mesmo tempo, uma imigrante chinesa nos Estados Unidos parte rumo a uma aventura onde, sozinha, precisará salvar o mundo, explorando outros universos e outras vidas que poderia ter vivido. Contudo, as coisas se complicam quando ela fica presa nessa infinidade de possibilidades sem conseguir retornar para casa.

Logo no início, o filme já mostra a tumultuada vida de Evelyn (Michelle Yeoh) e como ela, apesar de cuidar de tudo praticamente em todo o lugar ao mesmo tempo, parece desconectada. Ela está ali, fazendo tudo; mas no automático. Já não percebe mais o que faz. Só faz. É tensa. Desfocada. O marido pede para conversar algumas vezes, ela nem escuta o pedido. Não à toa, em certo momento, Evelyn escuta a frase: "Não esqueça de respirar".

O filme fala de metaversos. De vários universos paralelos possíveis e simultâneos. Em certo ponto, localizam Evelyn: "Estamos no 4655º Tetraverso." Ela passa por vários ao longo da narrativa. Afinal, como explica Waymond (Ke Huy Quan) cada pequena decisão que a gente toma gera uma ramificação e, assim, um outro metaverso. Soa bem irreal, mas, ao acompanhar a vida da protagonista, pensamos, muitas vezes,  que, na nossa, parece que já estamos vivendo estes diferentes universos. É sufocante. É incômodo e o filme nos causa exatamente estas sensações. Não é uma narrativa fácil. Nem todo mundo vai gostar, mas é uma grande reflexão. 

O longa foi o grande vencedor da 29ª edição do Screen Actors Guild (SAG) Awards deste ano. O filme de Daniel Kwan e Daniel Scheinert venceu quatro dos seis prêmios a que concorria e confirmou seu favoritismo para o Oscar 2023, onde lidera as indicações.

No SAG, ele arrematou Melhor Elenco, Melhor Atriz (Michelle Yeoh), Melhor Atriz Coadjuvante (Jamie Lee Curtis) e Melhor Ator Coadjuvante (Ke Huy Quan). Ele também foi eleito pelo Sindicato de Produtores como Melhor Filme para o Cinema do ano.

O crítico Bruno Carmelo comenta que o filme dialoga com o público mais jovem ao privilegiar uma linguagem mais dinâmica que se assemelha à realidade imposta por aplicativos como o TikTok,  trazendo para o cinema referências a filtros, piadas e memes, comuns à rede social. 

Em meio àqueles diferentes universos, Evelyn afirma para filha: "Isto é loucura!" e a filha responde: "Você está começando a entender". Talvez, este seja o grande recado dos diretores para todos nós: quando a gente parar e questionar nossa constante pressa, as multitarefas e os vários estímulos a que estamos sujeitos atualmente com as redes sociais e a internet, estaremos começando a entender...