sexta-feira, 24 de julho de 2015

Cupido é Moleque teimoso (1937)

Branca Machado – 07/072015

        A Sala Humberto Mauro acaba de exibir uma Mostra sobre as Screwball Comedies. Estas comédias dominaram o cinema na Era de Ouro de Hollywood (anos 30 e 40).  Tratam-se de filmes irreverentes e divertidos com uma personagem feminina forte e cheia de autoestima. Na época, os papéis femininos cômicos normalmente eram dois: a mocinha bela e ingênua e a bruxa feia e velha. Este terceiro papel de uma mulher autônoma, com vontade própria, era uma novidade. Grandes exemplares do gênero são “Aconteceu naquela noite” (1934)  de Frank Capra e “Levada da Breca” (1938) de Howard Hawks. Sobre as  comédias malucas, o crítico Andrew Sarris afirmou: " Trata-se de uma comédia sexual sem o sexo".
        Em Cupido é Moleque Teimoso, de Leo McCarey, o casal Lucy (Irene Dunne) e Jerry (Cary Grant) casaram-se num impulso e ele teve dificuldades de assumir a nova vida completamente. Assim, o filme inicia-se num clube onde Jerry faz um bronzeado artificial, pois havia dito a esposa que passaria duas semanas na Flórida, mas, na verdade, estava jogando pôquer na califórnia. Sobra a situação, comenta com o amigo: “O que elas não sabem, não sentem.” O problema é que choveu na Flórida no período e ele não sabia disso, mas a esposa sim. Como todas as cartas que Jerry escreveu a ela remetiam ao sol, Lucy percebeu a mentira e, em vez de ficar em casa desgostosa, manteve sua vida social e suas aulas com o professor de canto Armand Duvalle (Alexander D´Arcy). Ao retornar, Jerry descobre que sua mulher está ausente. Intrigado, mas sem querer demonstrar, mostra-se bastante moderno para os amigos que o acompanham que, inclusive, comentam que ele tem uma mente aberta, mais “europeia”. Quando finalmente a esposa chega, ela está com Armand, e ambos estão com roupa de festa. Jerry insiste que a situação não o incomoda, fiel à teoria de que no casamento tem que haver confiança. Porém, após os amigos saírem, Lucy pega uma laranja na cesta que Jerry lhe trouxe de presente e percebe que a fruta é da Califórnia. Neste momento, ele, que na verdade está bastante incomodado, comenta: “Não confio em mais ninguém”. Ela, olha para a fruta e diz: “Sei como você se sente...”.  Jerry e Lucy discutem sobre suas atitudes e novamente num impulso resolvem se divorciar.
        Esta cena estabelece toda a dinâmica do filme, que, numa série de subentendidos e situações não esclarecidas, vai mostrar o casal em situações hilárias em que um provoca o outro e não permitem que seus novos relacionamentos evoluam. Ali, também surge outra caraterística deste tipo de comédia: a aparente incompatibilidade do casal que se torna, inclusive, hostil entre si.O diretor usa cenas que serão retomadas posteriormente numa autorreferência prazerosa. Como, quando Lucy assiste ao show da acompanhante de Jerry, para, mais tarde, repeti-lo. Ou, quando ela brinca de esconder objetos de Smith, o cachorro que tinha com Jerry e, depois, o cachorro por causa desta mesma brincadeira, encontrará um objeto que não era para ser encontrado. Em determinado momento,  Jerry comenta com a futura sogra de Lucy: “Os três serão muito felizes em Oklahoma.”. Esta cena é interessante por que,  no fundo do plano, de frente para o espectador está Jerry. E, de costas para a câmera, mais à frente do plano, estão os três personagens a quem ele se refere. Ele, em contraponto aos três (Lucy, seu atual noivo e a futura sogra). E é justamente Jerry quem pode atrapalhar os planos dos outros personagens da cena.
        O filme pode ser considerado um subgênero deste tipo de comédia, pois aborda um tema recorrente dentro do estilo. Trata-se do casal que se divorcia para depois se casar novamente. Apesar dos personagens retomarem o casamento, o simples fato de se mostrar e discutir o divórcio foi uma grande evolução para a época. É sempre um prazer assistir às mostras que resgatam a história do cinema e nos levam a perceber sua evolução e por que o chamamos de sétima arte. As Screwball Comedies inovaram na temática, na agilidade da narrativa e na ironia dos diálogos. São filmes leves, inteligentes e sempre atuais. Afinal, parece que o cinema evoluiu, mas os relacionamentos continuam cheios de subentendidos e palavras não ditas.

sábado, 4 de julho de 2015

Vendedor de passados (2015)

Branca Machado – 29/05/2015

        Desde que começamos a estudar, ouvimos que é importante conhecer o passado para entender o presente e planejar o futuro. No caso do passado individual, o comum é a afirmação de que são os eventos do passado que determinam o que somos hoje. Mas e, se o que você é hoje, for uma ruptura total com o que ficou para trás?  E, se o seu presente, puder definir o seu passado e não o contrário? Esta é premissa de O Vendedor de Passados, filme de Lula Buarque de Holanda, baseado no livro de mesmo nome do angolano José Eduardo Agualusa.          
     Se não há como mudar a história, compra-se uma outra versão. Vicente (Lázaro ramos) trabalha como este vendedor de passados a partir do que a pessoa é no presente. A história do comprador é construída posteriormente e tem como produtos álbuns de fotografia, certidões de casamento e o que mais for necessário para corroborar o passado inventado como verdadeiro. O trabalho é complexo e dedicado. Acompanhamos Vicente reconstruir, por exemplo, o passado de Ernane (Anderson Müller), um ex-obeso que, quando tinha 08 anos, pesava 60 kg; quando tinha 14, pesava 80 kg; e, quando tinha 16, pesava 130. Não saía mais de casa. Com 34 anos, fez cirurgia bariátrica e várias plásticas. E, então, quis forjar a vida que não teve. Passou a ter ex –mulher, morou no exterior. Até seu convite de casamento, Vicente criou. Ao receber o produto, Ernane expõe seus motivos para ter encomendado uma nova história:  “Eu vou conseguir uma mulher agora, né? Toda mulher solteira se interessa por um homem divorciado e rico.”
        Vicente é também o narrador e sobre o passado ele afirma: “O passado é tudo aquilo que você lembra, o que você pensa que lembra, o que você se convence de que lembra e aquilo que você finge que lembra.” E, se você pode fingir, pode comprar, pode vender...Certo? Para ele, parece que sim.

     Quando surge uma cliente (Alinne Moraes) que simplesmente quer comprar um passado, mas sem dar uma pista de seu presente, a tarefa fica mais difícil para o protagonista. Não há ponto de partida. Até então, Vicente sempre havia criado o passado sem perder de vista a realidade que cerca seu cliente, criando uma história pregressa que fundia ficção com realidade. Ele argumenta que é muito fácil desmascarar um passado completamente novo. Os motivos da cliente por querer começar do zero não são muito claros e este fato trará suspense ao filme. Nos diálogos entre Vicente e Clara, nome dado por Vicente à cliente,  paira sempre uma dúvida do que é ficção e do que é verdadeiro.          
      O filme não aprofunda, mas aborda questões bem interessantes. Leva-nos a repensar nossas lembranças. Provoca também uma reflexão contemporânea sobre a construção de vidas e discursos por meio de novas mídias como Facebook, Instagram, sites de relacionamento, entre outros. Será que, de certa forma, não é isso que se faz lá? O que existe é basicamente uma edição de momentos felizes. Até que ponto esta edição pode resgatar a autoconfiança? Ajudar a superar frustrações? A memória está atrelada à identidade. E não deixa de ser um bom exercício pensar em como teria sido nosso passado a partir de quem somos hoje.