sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Ensaio sobre a Cegueira

Ensaio sobre a Cegueira (2008)

Branca Machado – 16/09/2008


Considero “O Ensaio sobre Cegueira” um dos melhores livros que já li. Ele trata do inusitado e de como o ser humano reage diante dele. A natureza humana está ali retratada de uma forma bem crua, primitiva, mas nem de longe falsa. Desta forma, ao mesmo tempo em que me fascinava a idéia de uma adaptação cinematográfica da obra, eu a temia. O resultado foi exato. Trata-se do filme do livro.Fernando Meirelles não fez concessões. A essência da obra de Saramago foi mantida e respeitada.

O início do filme é bastante envolvente e um acontecimento vai levando a outro em um ritmo frenético que nos deixa com uma real sensação de efeito dominó. O primeiro homem (Yusuke Iseya) está parado dentro de seu carro, esperando o semáforo abrir, mas, quando este fica verde, ele simplesmente não arranca. Buzinas são tocadas, e, no meio delas, um grito: “Estou cego!”. Diante daquele pavor, alguém (Don McKellar) se oferece para levá-lo em casa. O primeiro cego até chega a seu apartamento, mas seu carro segue com o “bondoso” ajudante. O que o faz refletir: “Que tipo de gente rouba de um cego? Devia ficar cego também”. Um desejo premonitório e muito adequado ao desencadear da trama.

Já no consultório do oftalmologista (Mark Ruffalo), o primeiro cego descreve sua cegueira: “É como nadar no leite...”. Mais tarde, incomodado com o fato de os olhos do paciente estarem perfeitos, o médico discute com a esposa (Julianne Moore) possíveis explicações para aquela doença repentina. Mas, no dia seguinte, o próprio amanhece cego: uma cegueira branca. E chega a gritar com a esposa que tenta ajudá-lo: “Não! Você tocou em mim! É contagioso!”.

As pessoas vão ficando cegas. O Ministério da Saúde age rapidamente com a resolução de colocar os doentes em quarentena. O medo torna a todos basicamente egoístas. E o isolamento dos doentes é a única solução para os saudáveis. O enfermeiro que vai buscar o médico está todo empacotado. Sua roupa chega a ser uma caricatura.A mulher do médico mente que está cega para acompanhá-lo. No prédio, há um monitor no qual um apresentador dá orientações: “Acima de qualquer particularidade, o que vocês fazem é um favor à nação. Cada paciente deve escolher sua cama. Cada ala tem um capitão”. Só os infectados podem entrar ali. A mulher diz ao médico, quando exploram o local: “Sorte sua, não enxergar”.

Fernando Meirelles, juntamente com César Charlone, diretor de fotografia, apropriadamente usaram iluminação estourada, brilhante, às vezes, até incômoda à platéia, além de optar por passagens de cena brancas. Em certo momento, o médico conversa com a esposa, a voz dele de um lado, a voz dela de outro e, na tela, o branco. Aquela cegueira incomoda: “Sempre igual. Sem dor. Um mar branco”. A trilha sonora, composta por Marco Antônio Guimarães do grupo UAKTI, é bastante apropriada. Basicamente instrumental, ela pontua determinados momentos de maior doçura ou tensão. E, quando a música realmente aparece, é num momento mágico em meio ao caos que aquele prédio se tornou.

O velho da venda preta (Danny Glover) chega à quarentena, com um rádio a tiracolo e novidades sobre o caos que a cidade se tornou.Cada vez mais pessoas foram contagiadas em momentos e lugares diversos e conclui: “O pânico espalhou a cegueira, ou a cegueira espalhou o pânico? As pessoas decidiram ficar em casa. E o problema do trânsito foi resolvido...”. É este o momento em que o rádio toca uma canção. Um momento no qual se respira e é possível relaxar.

Quando o grupo (a mulher do médico, o médico, o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, o menino estrábico, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta) chega às ruas, descobre-se que, afinal, o lado de fora está igual ao de dentro: em meio à sujeira, as pessoas viraram bichos em busca de comida.

E, se, no livro, como escreve o colega Roberto Domingues em sua coluna, “há belos quadros pintados com palavras”; no filme, temos o privilégio de vê-los pintados com imagens. No apartamento do médico, sentimos alívio, descanso e redenção que culminam com um jantar no qual o grupo brinda com água servida em taça de champanhe. A cena do banho das mulheres na varanda é retratada com bastante delicadeza e o diálogo entre elas demonstra um afeto recém descoberto: “Nos meus sonhos, você é linda!”.

A falta de nomes próprios foi mantida no filme. O velho com a venda preta diz à moça de óculos escuros (Alice Braga): “Eu conheci aquele lado seu que não tem nome. E que, afinal de contas, é o que realmente somos, não é?”. Não sabemos seus nomes, mas conhecemos sua essência. Saramago não está preocupado com explicações ao acontecimento trágico e inusitado, mas com a degradação moral que normalmente o acompanha. Funcionamos bem em condições normais, mas coloque um pouco mais disso ou daquilo que poucos não se revelarão. E, com algumas exceções, o resultado não é bonito. Mas, após um bom banho, rosto e corpo limpos, quem sabe, até purificados, não fomos abençoados com uma visão mais lúcida? Quem sabe agora realmente enxergaremos?

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