domingo, 4 de outubro de 2009

Foi apenas um sonho

Foi apenas um sonho

Branca Moura Machado – 25/06/2009

Richard Yates, em seu livro Revolutionary Road, de 1961, descreve o local em que mora o casal de protagonistas da seguinte forma: “O condomínio da Colina da Revolução não fora planejado para lidar com tragédias. Era tudo convincentemente alegre, um mundo de brinquedo”. O drama de que trata o autor é justamente este: a imposição de um mundo de brinquedo às pessoas reais. A tremenda opressão do estilo de vida perfeito (e igual) pode distorcer as pessoas a ponto de elas se partirem.
Para o diretor Sam Mendes, que filmou a adaptação do filme para as telas, Yates trata de sentimentos como pena e tédio. Frank Wheeler (Leonardo Dicaprio) e April Wheeler (Kate Winslet) vivem conforme um estilo de vida que desprezam. Ou, pelo menos, fingem desprezar. Não existem surpresas, o dia-a-dia é sempre igual. Há um vazio perturbador. Principalmente para April.
No livro, o autor aborda reações naturais e humanas que normalmente não percebemos . No filme, tais aspectos são muitas vezes sintezados em uma imagem. Por exemplo, a relatividade da beleza física. April pode ser bela e perfeita para Frank e, por vezes, parecer velha e decadente. Tudo de acordo com o contexto. Estas mudanças de impressão da aparência fisica muito bem descritas no livro são pontuadas sutilmente no filme. Em uma discussão com o marido, April está com os cabelos revoltos, realiza-se um close com ênfase em suas rugas e expressões tensas. É assim que ele a está enxergando. Quando ela visita o casal Campbell, aparece linda e sensual. E nosso ponto de vista é o de Shep Campbell (David Harbour): ele está encantado.
Há períodos da vida em que sentimos a presença do tempo.E, a partir de um determinado acontecimento, o tempo passa a ser sentido pelo casal, pressionando-o, ameaçando-o como uma espada sobre suas cabeças. Agora, cada momento que passa, chega mais perto da  hora da decisão. No filme, após a discussão do casal e a definição de um determinado prazo, a câmera foca o calendário na cozinha dos Wheeler. Agora, ele é personagem.
Quando Frank, de chapéu e terno, desce as escadas da estação para ir trabalhar, avistamos centenas de outros homens de chapéu e terno que também moram no subúrbio e que também diariamente vão trabalhar na cidade. Muitos homens e todos iguais. É como diz April ao marido: ”Quer saber a pior parte? Toda nossa existência aqui é baseada na crença de que somos superiores. Superiores a tudo isso. Mas não somos. Somos iguais a todo mundo... e temos punido um ao outro por isso.”
O diretor usa truques visuais para indicar certos sentimentos ou acontecimentos. Sabemos que alguém dormiu no sofá, mas não se mostra. Mostra-se a roupa de cama no sofá que April está arrumando. Quando Milly Campbell e Frank Wheeler dançam no bar, a iluminação da pista é verde e Milly se afasta, passando mal. Já, quando Shep e April dançam , a pista está vermelha. O clima está esquentando. A visita da família Givings aos Wheeler é montada de uma forma bastante intensa. Todos os personagens estão enquadrados: Sr Givings (Richard Easton) ao fundo no sofá, a Sra Givings (Kathy Bates) olhando pela janela, April sentada, John Givings (Michael Shannon) no outro canto, mais à frente do quadro. A tensão daquele momento é palpável.
Sam Mendes salienta que a janela panorâmica da casa branca dos Wheeler na Colina da Revolução possui vários significados ao longo da história. A princípio, simboliza que o casal cedeu ao padrão. Entrou na manada. Afinal, todas as casas “respeitáveis” tinham que possuir aquele tipo de janela. Mesmo assim, recém-casados, eles admitem o fato com humor: “uma janela não irá destruir nossa personalidade”. E, neste momento, olham através dela esperançosos. Eles possuem todo um futuro a sua frente. Quando April se posiciona em frente à janela, ao final do filme, ela simboliza uma prisão da qual April não conseguiu escapar.
A última cena de “Foi apenas um sonho” é brilhante. O Sr Givings reduz o volume de seu aparelho de surdez até não escutar mais o que Sra Givings diz. Nós também não ouvimos mais nada. O alívio sentido pelo Sr Givings é compartilhado pelos espectadores. A Sra Givings sintetiza toda a superficialidade de que Yates trata. E certamente não queremos mais ouvi-la.

Um comentário:

  1. Acabo de ler um texto da Martha Medeiros chamado "A pior vontade de viver". Nele, a autora comenta o conto "Amor" de Clarice Lispector.Clarice, no conto, fala sobre a pior vontade de viver. Aquela que subverte, que não segue ao padrão combinado, que não está dentro do script.Aquela que está fora do Condomínio da Revolução e seu mundo de brinquedo.Aquela que te diferencia,liberta, autentica.

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