quarta-feira, 1 de outubro de 2025

O Último Azul

 


“O Último Azul” se passa em um Brasil distópico no qual pessoas com mais de 75anos devem ser retiradas da sociedade e recolhidas a uma colônia de idosos. A história lembra obras como 1984 de George Orwell, incluindo aspectos como a vigilância constante, a supressão da liberdade individual e do pensamento crítico. 

Trata-se de uma atmosfera opressiva e imaginária, mas que, em alguns momentos, não nos parece tão improvável quanto deveria. No filme, acompanhamos Tereza (Denise Weinberg), uma mulher de 77 anos, que descobre que não pode mais se deslocar sem a autorização da filha e que tem poucos dias para se mudar para a colônia. 

Tereza é resistência. Ela não quer ir. Não vê motivo. Não queria também parar de trabalhar, mas teve... Em sua saga marginal para escapar desta sina legal, ela cruza com diversos personagens como o barqueiro Cadu (Rodrigo Santoro) ou Roberta (Miriam Socarrás), como a navegante que comprou sua liberdade. Cada personagem é uma possibilidade. Toda a travessia acontece pelos rios amazônicos, um cenário que é também personagem. 

Dirigido por Gabriel Mascaro, o filme conquistou destaque internacional: foi premiado com o Urso de Prata no Festival de Berlim e teve o reconhecimento do público com o Prêmio do Júri de Leitores do jornal Berliner Morgenpost. Segundo o diretor, “o filme é um manifesto poético sobre o direito de sonhar — independentemente da idade — e sobre a possibilidade de ressignificar a vida a qualquer momento”. 

O personagem castrador, além do estado, é a filha que a todo momento impede a mãe de seguir com o que quer. Ela, por lei, é quem toma as decisões desde que Tereza completou 75 anos e até recebe uma compensação financeira por isto. Esta inversão é cada vez mais pertinente. O outsider é o idoso; o repressor, o filho. Segundo Angelo Cordeiro da revista Rolling Stone, “O Último Azul é coming of age da terceira idade em uma Amazônia distópica e fabular: Em vez da adolescência, é a velhice que ganha contornos de aprendizado, desejo e transformação. Tereza, com sua força silenciosa, enfrenta desafios que a obrigam a rever sua relação com o mundo e com o próprio corpo”.

Hoje, com assuntos como o etarismo e o aumento da longevidade em alta, o filme traz uma reflexão válida e atual. E a lição que nos deixa é que idade não é sentença. A vida sempre terá possibilidades para quem tem disposição e sonhos a realizar. 



sexta-feira, 5 de setembro de 2025

A mulher da casa abandonada

O documentário “A mulher da casa abandonada” é uma adaptação do podcast de mesmo nome, produzido pelo jornalista Chico Felitti, em 2022.

Felitti conta que, durante a pandemia, começou a caminhar pelo bairro Higienópolis em São Paulo e a reparar numa outrora mansão, mas, agora, abandonada. Nela, de vez em quando, ele via uma mulher estranha, malvestida, com o rosto muito branco no lado externo da casa.

Resolveu investigar, a princípio, por desconfiar de maus tratos a idosos. Mas, depois, descobriu que havia algo bem pior. O podcast viralizou pelo mistério em torno desta mulher; que, ao longo de suas investigações, Felitti descobriu se tratar de Margarida Bonetti, descendente de uma família da aristocracia paulista.

Não só isto, mas que ela e seu ex-marido, Renê Bonetti, foram acusados de manter uma empregada ilegalmente nos EUA em situações análogas à escravidão. Eles foram julgados naquele país e condenados. Margarida retornou ao Brasil antes do julgamento e ficou foragida, desde então. Mesmo assim, o caso teve um impacto nos EUA, resultando na criação de uma lei que protege vítimas de trabalho forçado.

Lançado pela Amazon Prime, o documentário traz depoimentos inéditos da vítima, Hilda Rosa dos Santos, de 85 anos. Em certo momento, ela se questiona: “Por que me fazer sofrer tanto assim?”.

Novamente, assistimos à monstruosidade de pessoas reais. Como eu escrevi na coluna de julho, elas não são incomuns. Mas são sempre chocantes. E o discurso banal para justificar o sórdido está também presente.  Ouvimos coisas como “Foi um choque cultural. No Brasil, isto não teria nada demais”.

Em nenhum momento, Margarida ou René reconhecem ter feito algo errado com Hilda. Em todas as suas falas, relativizam a crueldade que fizeram e quase a tornam trivial. Quase. Porque produções como este documentário e pessoas como os vizinhos americanos que resgataram Hilda estão aí para nos mostrar que, de banal, este caso tem nada. E, ao colocar os depoimentos dos patrões em contraponto aos da empregada, o filme acerta por nos chocar ainda mais.

O que atrai nesta história como drama narrativo, além do mistério, é a virada. Quem começa como provável vítima torna-se algoz. E a trama termina com a irônica sensação de que a casa abandonada virou um lugar bom demais para aquela mulher. 


sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A Garota da Agulha

 



A Garota da Agulha é daqueles filmes cujo protagonista começa em uma situação ruim e, por estar nela, realiza escolhas e decisões desesperadas que só pioram sua situação. No caso de Karoline (Victoria Carmen Sonne), a personagem principal, sua trajetória é de degradação.

O filme começa com a jovem grávida, abandonada pelo pai da criança, que também era seu chefe. Por isto, fica também desempregada. Uma história não tão incomum na vida das mulheres até hoje. Mas ela luta para sobreviver em Copenhague após a Primeira Guerra Mundial. O ambiente é de miséria, fome, indiferença e falta de perspectiva. Assim, qualquer acolhimento é melhor que nenhum. E ela é acolhida por Dagmar (Trine Dyrholm), uma mulher carismática e misteriosa, que comanda uma agência de adoção clandestina a quem Karoline passou seu bebê.

Representante da Dinamarca na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Internacional em 2024, o filme tem uma fotografia em preto e branco extremamente simbólica e expressiva. O céu estrelado abafado por chaminés, fumaça e telhas escuras representa perfeitamente o clima da narrativa e do pós-guerra.

Não por acaso, ele é inspirado no expressionismo alemão, que surgiu em meados de 1920, época na qual a história se passa. O movimento se caracterizou pela representação subjetiva do mundo, expressando emoções internas e angústias por meio de distorções visuais e performances exageradas; todos, elementos contidos no filme.

É chocante saber que a história, inimaginável em certos aspectos, é inspirada em acontecimentos reais. Dagmar Johanne Amalie Overby realmente existiu... A Garota da Agulha não é um filme de terror. Antes fosse.

Por não ser, é muito mais aterrorizante que qualquer filme do gênero. Ele nos amedronta pela monstruosidade de uma pessoa real. Daquelas que criam um discurso de justiça para fazer o sórdido. Elas não são incomuns. Dagmar representa o extremo delas. Em seu julgamento, insiste em dizer que deveriam agradecê-la: “Fiz o que era preciso. Deviam me dar uma medalha.” Depois de tudo que acompanhamos ao longo da história, o impacto desta fala da personagem, olhando diretamente para as pessoas ali presentes (que é também onde está o nosso olhar), ecoa em nossa mente para muito depois do filme. 

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Homem com H

 
Homem com H é um filme que tem a coragem do biografado. Se a vida de Ney Matogrosso foi de uma forma, é desta forma que ela é mostrada. Acompanhamos uma infância muito rígida com um pai militar que não queria filho artista e afeminado e que, por isto, infligia duros castigos físicos ao Ney pequenino. Em seguida, assistimos a um jovem que vira o jogo em busca de uma liberdade total tanto sexual quanto artística de um homem que sabia muito bem quem queria ser, um homem com H.
Em certo momento, o cantor reflete: “Eu nunca fui criança, nem quando eu era”. Por ter crescido em um ambiente tão repressivo e violento, Ney criou esta obstinação em crescer para fazer o que queria e acreditava. Ele não relaxava. Ele nem chorava. Sua ambição era a de viver do seu jeito: “Eu não vou passar a vida, pensando em me aposentar”. No filme, Ney é vivido por Jesuíta Barbosa, que interpreta o cantor de forma visceral, representando a revolução artística que Matogrosso provocou. Ao mostrar Ney e Cazuza planejarem o último show do cantor, do qual Ney foi diretor, o filme nos leva a refletir sobre como certos padrões se repetem e precisam ser quebrados. Não à toa vemos Cazuza apresentar uma letra inédita “Disparo contra o sol, sou forte, sou por acaso, eu sou um cara... Cansado de correr na direção contrária... Eu vejo o futuro repetir o passado”. Ney, emocionado, insiste que o cantor encerre seu show com ela. O tempo não para. É preciso que surjam pessoas como eles para mostrar que é possível ser diferente, correr na direção contrária. É preciso reagir ao que foi definido como o “deve ser.” E é importante que o cinema nos lembre de que estas pessoas existem. Ney tem um olhar direto para a plateia. Ele chega a ser criticado por isto em certo momento do filme. Mas foi com esta postura única, corajosa e, por que não, afrontosa, que ele chegou onde queria chegar. Em seu espetáculo de 2024, incluiu no repertório: “Eu, por mim, queria isso e aquilo. Um quilo mais daquilo, um grilo menos nisso. É disso que eu preciso ou não é nada disso. Eu quero é todo mundo nesse carnaval.” E nós, na plateia, também. Ficamos com a vontade de que ele nunca tire seu bloco da rua. E que siga gingando, pra dar e vender.


terça-feira, 3 de junho de 2025

Vidas Passadas

 



Vidas Passadas é um drama romântico que concorreu a cinco categorias no Globo de Ouro de 2024: melhor filme de drama, melhor direção para Celine Song, melhor atriz em filme de drama para Greta Lee, melhor roteiro e melhor filme estrangeiro. A trama acompanha um romance de infância entre Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo), colegas de classe em uma escola primária em Seul que termina quando a família dela emigra para o Canadá.

Após 12 anos, por meio de redes sociais, os dois retomam o contato. E tornam-se presentes na vida um do outro, apesar da distância. O problema é que há coisas que, se o virtual aproxima, traz também a necessidade da presença. Entretanto, o encontro daqueles personagens parece uma possibilidade distante... Nora, sempre mais racional e determinada, acaba propondo um afastamento. E 12 anos novamente passarão até que finalmente aquele encontro presencial aconteça. Mas, enquanto isso, a vida seguiu.

A conexão e a emoção entre Nora e Hae são palpáveis e muito bem construídas. Com uma fotografia delicada e irretocável, o filme é sutil. E, nesta sutileza, percebemos tudo. A cena inicial, por exemplo,  na qual um casal desconhecido observa Nora, Arthur e Hae Sung em um bar de Nova York e especula sobre a dinâmica do relacionamento do trio é emblemática porque, ali, já se introduz as possibilidades que serão, afinal, o tema do filme.

Sobre ele, a crítica cinematográfica Isabela Boscov comentou “Para mim, Vidas Passadas é uma destas obras transformadoras. É mais ou menos impossível chegar a certa altura da vida sem que uma escolha tenha excluído completamente outra”. O filme trata deste paradoxo da escolha, que pode nos deixar descontentes, mesmo quando tomamos decisões.

 Afinal, não é possível seguir um caminho, sem deixar de seguir outro. Não é simples, mas é fato que, a partir de uma decisão, toda uma vida será construída. E temos que seguir. O que não aconteceu não aconteceu. Pelo menos, nesta vida. 

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Oeste outra vez



Oeste outra vez já indica a que veio no nome. Traz o gênero clássico, ambientado no velho Oeste dos Estados Unidos, para o sertão de goiás. Estamos nele outra vez? Em muitos aspectos, sim. Temas como honra, justiça com as próprias mãos, rivalidade e violência estão lá. Mas, há também um lado bem diferente: a masculinidade, tão viril em filmes do gênero, é desconstruída no filme de Érico Rassi.

Não vemos cowboys galãs, elegantes, imbatíveis. São personagens de um sertão nada plástico. Babu Santana e Ângelo Antônio interpretam dois rivais. Após Luiza (Tuanny Araújo) trocar Totó (Ângelo Antônio) por Durval (Babu Santana), Totó quer vingança. Alguns críticos disseram que, apesar da trama, o filme é lento com uma disputa que custa a sair do lugar. Mas trata-se do ritmo daquele sertão. Daqueles personagens. São lentos. São limitados. Não poderiam mesmo estar em um thriller dinâmico.

Com apenas uma mulher em cena durante 30 segundos, o filme mostra homens frágeis, querendo honrar algo que nunca tiveram. A impressão que se tem é que elas saíram de cena porque não têm mais paciência. Como escreveu Luiza Missi do Splash: “a nova aposta do cinema nacional quase não tem mulheres em cena, e isso é bom.” O lugar delas não deve ser mesmo ali. Ao lado de homens, cuja vida se limita a tomar um shot, ver o tempo passar e arrumar motivos para tornarem-se mocinhos e bandidos. Elas merecem mais.

“Oeste outra vez” mostra, assim, o lado b do estilo que representa. Talvez, muito mais real. O que vemos ali são homens inseguros, carentes, buscando propósitos aleatórios. Até na sinuca, presente em todos os bares em cena, não os vemos encaçapar uma bola. É uma versão que causa descolamento, comicidade e, quem sabe, um certo desconforto. Afinal, enxergar-se sem máscaras traz uma enorme vulnerabilidade. 


segunda-feira, 31 de março de 2025

Anora

 




Anora foi o vencedor do Oscar 2025. Além do prêmio de melhor filme, levou mais quatro: roteiro original, montagem, direção e atriz. Ele ainda venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Claro, não foi à toa. Mas também não é tão simples entender o motivo para este sucesso. Tem quem tenha adorado; tem que tenha achado bastante injusto. Indiferente, ninguém ficou.

O filme narra a história de Anora (Mikey Madison), uma dançarina erótica que conhece o herdeiro de um oligarca russo, casa-se com ele e, em seguida, é perseguida e coagida a anular o casamento.

O diretor Sean Baker realiza uma mescla de estilos cinematográficos de forma eficiente e faz com que a gente pense estar acompanhando uma história e, de repente, estamos em outra. No começo, ficamos inquietos e até incomodados com a forma eufórica e alucinante com que a história se passa. Sexo, drogas e até amigos são prazeres tão fugazes que, nem durante o “consumo”, parece haver total satisfação. Há no olhar e nos movimentos daqueles personagens uma falta de foco e uma certa aleatoriedade que não soam divertidos.

A história chega a parecer romântica com a decisão do herdeiro russo de se casar com a prostituta. Mas esta impressão também é fugaz. Logo em seguida, o filme torna-se  um thriller intenso de busca com planos sequências e personagens que nos lembram gangsters. Alguns, até cômicos. É neste ponto que surge o capanga armênio Igor (Yura Borisov) que passa a ser interesse da câmera. Ele é o único que enxerga a protagonista de uma forma mais humana, talvez, por entender, como afirma a crítica cinematográfica Isabela Boscov, que ambos estão na parte mais baixa daquela pirâmide social.

Podem lutar, gritar (e como Anora grita!) que, ali, não têm a menor chance. Ela tenta. Ele, nem isto. Resignado, tem um olhar de compreensão que a gente só percebe porque o diretor nos guia para ele. O filme é, portanto, um exercício cinematográfico bastante interessante. Mas, talvez, por isto, deixou de nos envolver de forma a torcermos verdadeiramente pelos personagens.  A cena final precisa desta conexão para ser absorvida em sua totalidade. Sem ela, causa estranhamento. Mas é bom ver Anora chorar. Ela estava precisando.