segunda-feira, 30 de junho de 2025

Homem com H

 
Homem com H é um filme que tem a coragem do biografado. Se a vida de Ney Matogrosso foi de uma forma, é desta forma que ela é mostrada. Acompanhamos uma infância muito rígida com um pai militar que não queria filho artista e afeminado e que, por isto, infligia duros castigos físicos ao Ney pequenino. Em seguida, assistimos a um jovem que vira o jogo em busca de uma liberdade total tanto sexual quanto artística de um homem que sabia muito bem quem queria ser, um homem com H.
Em certo momento, o cantor reflete: “Eu nunca fui criança, nem quando eu era”. Por ter crescido em um ambiente tão repressivo e violento, Ney criou esta obstinação em crescer para fazer o que queria e acreditava. Ele não relaxava. Ele nem chorava. Sua ambição era a de viver do seu jeito: “Eu não vou passar a vida, pensando em me aposentar”. No filme, Ney é vivido por Jesuíta Barbosa, que interpreta o cantor de forma visceral, representando a revolução artística que Matogrosso provocou. Ao mostrar Ney e Cazuza planejarem o último show do cantor, do qual Ney foi diretor, o filme nos leva a refletir sobre como certos padrões se repetem e precisam ser quebrados. Não à toa vemos Cazuza apresentar uma letra inédita “Disparo contra o sol, sou forte, sou por acaso, eu sou um cara... Cansado de correr na direção contrária... Eu vejo o futuro repetir o passado”. Ney, emocionado, insiste que o cantor encerre seu show com ela. O tempo não para. É preciso que surjam pessoas como eles para mostrar que é possível ser diferente, correr na direção contrária. É preciso reagir ao que foi definido como o “deve ser.” E é importante que o cinema nos lembre de que estas pessoas existem. Ney tem um olhar direto para a plateia. Ele chega a ser criticado por isto em certo momento do filme. Mas foi com esta postura única, corajosa e, por que não, afrontosa, que ele chegou onde queria chegar. Em seu espetáculo de 2024, incluiu no repertório: “Eu, por mim, queria isso e aquilo. Um quilo mais daquilo, um grilo menos nisso. É disso que eu preciso ou não é nada disso. Eu quero é todo mundo nesse carnaval.” E nós, na plateia, também. Ficamos com a vontade de que ele nunca tire seu bloco da rua. E que siga gingando, pra dar e vender.


terça-feira, 3 de junho de 2025

Vidas Passadas

 



Vidas Passadas é um drama romântico que concorreu a cinco categorias no Globo de Ouro de 2024: melhor filme de drama, melhor direção para Celine Song, melhor atriz em filme de drama para Greta Lee, melhor roteiro e melhor filme estrangeiro. A trama acompanha um romance de infância entre Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo), colegas de classe em uma escola primária em Seul que termina quando a família dela emigra para o Canadá.

Após 12 anos, por meio de redes sociais, os dois retomam o contato. E tornam-se presentes na vida um do outro, apesar da distância. O problema é que há coisas que, se o virtual aproxima, traz também a necessidade da presença. Entretanto, o encontro daqueles personagens parece uma possibilidade distante... Nora, sempre mais racional e determinada, acaba propondo um afastamento. E 12 anos novamente passarão até que finalmente aquele encontro presencial aconteça. Mas, enquanto isso, a vida seguiu.

A conexão e a emoção entre Nora e Hae são palpáveis e muito bem construídas. Com uma fotografia delicada e irretocável, o filme é sutil. E, nesta sutileza, percebemos tudo. A cena inicial, por exemplo,  na qual um casal desconhecido observa Nora, Arthur e Hae Sung em um bar de Nova York e especula sobre a dinâmica do relacionamento do trio é emblemática porque, ali, já se introduz as possibilidades que serão, afinal, o tema do filme.

Sobre ele, a crítica cinematográfica Isabela Boscov comentou “Para mim, Vidas Passadas é uma destas obras transformadoras. É mais ou menos impossível chegar a certa altura da vida sem que uma escolha tenha excluído completamente outra”. O filme trata deste paradoxo da escolha, que pode nos deixar descontentes, mesmo quando tomamos decisões.

 Afinal, não é possível seguir um caminho, sem deixar de seguir outro. Não é simples, mas é fato que, a partir de uma decisão, toda uma vida será construída. E temos que seguir. O que não aconteceu não aconteceu. Pelo menos, nesta vida. 

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Oeste outra vez



Oeste outra vez já indica a que veio no nome. Traz o gênero clássico, ambientado no velho Oeste dos Estados Unidos, para o sertão de goiás. Estamos nele outra vez? Em muitos aspectos, sim. Temas como honra, justiça com as próprias mãos, rivalidade e violência estão lá. Mas, há também um lado bem diferente: a masculinidade, tão viril em filmes do gênero, é desconstruída no filme de Érico Rassi.

Não vemos cowboys galãs, elegantes, imbatíveis. São personagens de um sertão nada plástico. Babu Santana e Ângelo Antônio interpretam dois rivais. Após Luiza (Tuanny Araújo) trocar Totó (Ângelo Antônio) por Durval (Babu Santana), Totó quer vingança. Alguns críticos disseram que, apesar da trama, o filme é lento com uma disputa que custa a sair do lugar. Mas trata-se do ritmo daquele sertão. Daqueles personagens. São lentos. São limitados. Não poderiam mesmo estar em um thriller dinâmico.

Com apenas uma mulher em cena durante 30 segundos, o filme mostra homens frágeis, querendo honrar algo que nunca tiveram. A impressão que se tem é que elas saíram de cena porque não têm mais paciência. Como escreveu Luiza Missi do Splash: “a nova aposta do cinema nacional quase não tem mulheres em cena, e isso é bom.” O lugar delas não deve ser mesmo ali. Ao lado de homens, cuja vida se limita a tomar um shot, ver o tempo passar e arrumar motivos para tornarem-se mocinhos e bandidos. Elas merecem mais.

“Oeste outra vez” mostra, assim, o lado b do estilo que representa. Talvez, muito mais real. O que vemos ali são homens inseguros, carentes, buscando propósitos aleatórios. Até na sinuca, presente em todos os bares em cena, não os vemos encaçapar uma bola. É uma versão que causa descolamento, comicidade e, quem sabe, um certo desconforto. Afinal, enxergar-se sem máscaras traz uma enorme vulnerabilidade. 


segunda-feira, 31 de março de 2025

Anora

 




Anora foi o vencedor do Oscar 2025. Além do prêmio de melhor filme, levou mais quatro: roteiro original, montagem, direção e atriz. Ele ainda venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Claro, não foi à toa. Mas também não é tão simples entender o motivo para este sucesso. Tem quem tenha adorado; tem que tenha achado bastante injusto. Indiferente, ninguém ficou.

O filme narra a história de Anora (Mikey Madison), uma dançarina erótica que conhece o herdeiro de um oligarca russo, casa-se com ele e, em seguida, é perseguida e coagida a anular o casamento.

O diretor Sean Baker realiza uma mescla de estilos cinematográficos de forma eficiente e faz com que a gente pense estar acompanhando uma história e, de repente, estamos em outra. No começo, ficamos inquietos e até incomodados com a forma eufórica e alucinante com que a história se passa. Sexo, drogas e até amigos são prazeres tão fugazes que, nem durante o “consumo”, parece haver total satisfação. Há no olhar e nos movimentos daqueles personagens uma falta de foco e uma certa aleatoriedade que não soam divertidos.

A história chega a parecer romântica com a decisão do herdeiro russo de se casar com a prostituta. Mas esta impressão também é fugaz. Logo em seguida, o filme torna-se  um thriller intenso de busca com planos sequências e personagens que nos lembram gangsters. Alguns, até cômicos. É neste ponto que surge o capanga armênio Igor (Yura Borisov) que passa a ser interesse da câmera. Ele é o único que enxerga a protagonista de uma forma mais humana, talvez, por entender, como afirma a crítica cinematográfica Isabela Boscov, que ambos estão na parte mais baixa daquela pirâmide social.

Podem lutar, gritar (e como Anora grita!) que, ali, não têm a menor chance. Ela tenta. Ele, nem isto. Resignado, tem um olhar de compreensão que a gente só percebe porque o diretor nos guia para ele. O filme é, portanto, um exercício cinematográfico bastante interessante. Mas, talvez, por isto, deixou de nos envolver de forma a torcermos verdadeiramente pelos personagens.  A cena final precisa desta conexão para ser absorvida em sua totalidade. Sem ela, causa estranhamento. Mas é bom ver Anora chorar. Ela estava precisando. 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Conclave

Conclave, dirigido por Edward Berger, recebeu 8 indicações ao Oscar 2025, entre elas, melhor filme, melhor ator (para Ralph Fiennes) e melhor roteiro adaptado. Baseado no livro de mesmo nome, do autor Robert Harris, sua trama se passa no Vaticano durante um conclave papal agitado por mistérios, intrigas e suspense.

A história começa com a morte repentina do Papa e com o Cardeal Lawrence (Fiennes) sendo indicado para gerenciar o conclave de escolha do novo Pontífice. A partir daí, o filme se passa durante o processo ultrassecreto e ritualístico da escolha do novo Papa e apenas nas dependências onde ele acontece. Vemos e convivemos com os ambientes que os cardeais votantes frequentam. A palavra “conclave” A palavra “conclave” pode ser traduzida como um lugar que pode ser fechado por chave e é assim que estamos, juntamente com os cardeais, e sentimos, como eles, que aquela escolha não vai ser fácil.

São 108 participantes e é preciso obter 2/3 dos votos. Não há candidatos. Todos ali podem ser escolhidos. Mas existem tendências opostas: Tedesco (Sergio Castellitto); o cardeal ultraconservador de Veneza; Bellini (Stanley Tucci); progressista, defensor, por exemplo, de direito das mulheres dentro do Vaticano; e alguns azarões como Benítez (Carlos Diehz), que defende que “A igreja não é passado. É o que faremos a seguir”.

Mentiras, acontecimentos passados e dúvidas permeiam a escolha e o andamento do processo; o que nos prende à trama e nos remete às eleições políticas. Fotografia e trilha sonora reforçam toda esta tensão e ajudam a envolver o espectador.

Alguns irão se surpreender com o final, mas, para mim, a decisão do Decano foi coerente com seu personagem. Afinal, em seu discurso de abertura, Lawrence declarou: “Nossa fé é uma coisa viva. Precisamente porque anda de mãos dadas com a dúvida. Se houvesse apenas certeza e nenhuma dúvida, não haveria mistério. E, portanto, nenhuma necessidade de fé.” Escolhendo, assim, o “talvez” do Cardeal Benítez “Talvez seja a minha diferença que me tornará mais útil”.